segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Iceberg, right ahead!

Não encontro na rabugem uma estética propriamente dita, mas, sobretudo por razões de saúde, estou cada vez mais convicto da necessidade de se atribuir um tom poético emergencial às impertinências que me cercam. Ora, não deveria passar o esgoto por um tratamento antes de ser lançado aos cardumes? Não deveríamos adotar o “rir pra não chorar” como aforismo mor sobre a eficiência das ironias e resignificações enquanto estratégias de sobrevivência? Pois bem. A gênese de meu psicopata interior – ou pelo menos boa parte de sua maturação – se deve ao profundo desprezo que nutro por uma considerável parcela de meus conterrâneos. Em contrapartida, do exaltar desta malquerença me brota certa estabilidade, uma santa barreira ao acting-out. Do mau-humor à cólera, encontro nesse meu novo personagem favorito, portador duma usina de mil cânceres, o caminho para meu bem estar espiritual. Sinceramente, nunca me orgulhei tanto de querer matar a todos. E também nunca estive tão certo de ser um cidadão de bem.

Não sei por que diabos venho me tornando sensível à falta de cordialidade, este valor anacrônico que de nada parece servir aos habitantes de um órgão burocrático equivocadamente tomado por “cidade” nos últimos quarenta e nove anos. “Pode ser que Brasília não seja uma ilha de gelo em pleno paralelo quinze, que baste um empurrãozinho para que as picuinhas da interação candanga se dissolvam no calor deste enérgico cenário de tantas possíveis amizades duradouras...” Argh! Se tudo é uma questão de estímulo, sustento que o clitóris da simpatia autóctone é do tipo fugidio. Pelas bandas de cá, é relativamente fácil manter as intimidades – a falta de opção é sempre uma boa justificativa para o feijão-com-arroz. Quase todo afastamento ou perda de contato é premeditado, possui suas razões sensatas: sim, o potencial de desencontro de nossa urbe é praticamente nulo. Quanto aos anônimos, por outro lado, parece existir um foda-se mútuo, nada de muito doloroso, mas que sem dúvida compromete o estágio seguinte de aproximação, confere às “relações meio de caminho” a inconfundível frigidez regional. Aqui, os apenas “conhecidos” têm por prática a fantasmagorização, um esporte incentivado sabe-se lá se pela preguiça ou pelo Alzheimer. É curioso como uma enfermidade social pautada na esterilidade obtém sucesso em seu projeto de reprodução: ultimamente venho considerando a possibilidade de um mimetismo, o de também adotar a cerca elétrica como modelo político para a boa vizinhança.

A noite passada foi como tantas outras, estive por aí a renovar meus estoques de desapontamentos. Para que o ódio chegue ao cume, é necessário que o primeiro imbecil cruze à sua frente: confluência fatalista de Lao-Tsé com Talião. Assim começa minha empreitada noturna, pois mal chego ao bar e já me atualizam o dialeto, descubro ser o silêncio a mais nova resposta padrão para “Boa noite” – ou estaria eu, de maneira desavisada, freqüentando um antro de boêmios telepatas? Mesa cumprida, disposição curta, e por ai a coisa segue, nojo vai, nojo vem... Olho por olho, dente por dente e ficamos todos entediados. Não me recordo de quantas indelicadezas pratiquei – desculpem-me se a ira me indispõe a contar os coices. É fato que em meio às hostilidades precisamos não só de espinhos nas costas, mas de uma defesa mais ofensiva. Quando me taxam de exagerado, defendo-me alegando que tudo não passa de um recurso estilístico, alego ser toda a minha reatividade nada mais que uma forma lúdica de esquiva.

A cretinice não é um golpe fatal. “É perdoando que se é perdoado”, disse o livro das cabeludas de saia. Embora minha beatitude ande em baixa, martirizo-me na tentativa de quebra do ciclo vicioso; sigo da morbidade daquele bar para uma festa, reparem bem, in-festada pelos mesmos porcos moribundos. Como se chama mesmo aquele remédio para os nervos? Ah, sim... Paciência. Perdi meu frasco no momento em que “interagia” com um rapaz muito educado, mas que, infelizmente, parecia ter faltado a uma imprescindível lição de física, a tal que diz não poderem dois corpos ocupar o mesmo espaço simultaneamente. Teve também a rapariga que, por um trauma – provavelmente em vésperas de aniversariar –, recusou-me a palavra: se não me engano, minha embriaguez fora responsável por alguns comentários jocosos acompanhados pela ligeira inconveniência de uns poucos perdigotos. Viram? Todo mundo erra! Evitar esse tipo de imprevisibilidade, ainda mais em um churrasco universitário como aquele do ano passado, beira o disparate. Procure então a calmaria de um SPA nas montanhas, faça-me o favor! E teve mais aquilo, e aquilo, e aquilo outro.

Mas vejam, nem tudo no inferno são chamas... Ainda na festa, uma jovem estrangeira me cedeu um sorriso de mil léguas! E um antigo colega de classe se dobrou a responder meu “como vai?” com complementos ao monossílabo de praxe. Lançou-me de volta, inclusive, um “E você?”. Entretanto, mesmo estando ao alcance pessoas que ainda merecem pertencer ao reino animal – a tetraplegia é minha maldição favorita –, o mar não estava para peixes. Fui embora. Dei carona para uma amiga minha, uma japonesa – perdendo apenas para os russos, os japoneses serão sempre dignos de minha profunda admiração; essa em especial mais ainda. Na volta, uma palavra doce me deu vontade de respirar. E, já em meu leito, pensando sobre o quanto de dança é necessário para se enfrentar, além do nosso próprio, o lodo dos outros, avistei um inseto no teto. Vocês sabem o que dizem desses bichos, as esperanças? Meus músculos faciais aguardavam de meu coração o resultado de um cálculo evolvendo misticismo e preguiça... Fosse positivo o saldo, teriam esboçado alguma reação. Daí, sem mais nem menos, zaz! Uma lagartixa abocanhou meu artrópode-metáfora...

É osso.