segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Pão com Sapólio

Cida é um doce, faz de tudo um pouco. Se acha graça, tampa com a mão, já viu? É que nela faltam peças pro riso. A irmã, quando quinze ou um pouco mais, cariou os dois da frente. O pai mandou arrancar logo tudo e botar dentadura. Imagine o moço prensando a cabecinha da menina na parede... Tenha dó. Cida viu aquilo, não esquece por nada. “Sai pra lá com o homem do alicate, cruz credo.”

Cida tem muita coisa boa. A gente não dá só o que é velho não, viu? O quarto dela tem uma basculante grande, entra bastante ar. Na mesa ela não se senta, diz que é porque não sabe comer com a forquilha. Ou não gosta. Forquilha é garfo. Engraçado, né? Cida, Cida. Sabe onde tá tudo nessa casa. Não fosse ela...

Adivinha de quem é o melhor cafuné do mundo? Da Cida, ué. Era assim que ela ensinava sobre a coisa da malcriação: não fez lição, não banhou na hora? Então não tem cata piolho! Cida tem sessenta e seis anos, é quase minha avó. É tanto mimo... Menina do céu! Uma vez eu perguntei se eu podia ficar no lugar da neta dela, uma que mora em Simões. Desabou no choro. Ai, minha vovó Cida...

Esse negócio de carteira assinada minha mãe já explicou pra ela. É pior. No domingo não pode pedir muita coisa, que é pra ela por os pés no alto, ver se desincha. E o solado? Sequinho, sequinho. Cida diz que reza pra todo mundo aqui de casa.

Olha esse feijão, que coisa do outro mundo! Mas é estranho. Vou te falar baixinho, ó. Às vezes eu tenho medo, fico pensando: e se ela botar aqui... É... Um pouco de veneno, sabe?

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

SOS suruba

Outro dia acabei caindo numa destas putarias universitárias. Três homens e duas mulheres. Samba vai, samba vem... Um cu me olhando fixo. Estando o mesmo asseado, não me pareceu má a idéia de chupá-lo. Daí o sujeito se vira indignado, me joga um papo sem noção - gritou que era homem, etc. “Homem é o caralho”, eu disse pra ele. “Tu é um viadinho, mermão.”

Bacanal Clean: reparem bem na igreja que esse pessoal foi inventar de rezar agora...

Figurada

Longe do patrão querer bancar o empregador cruel. Esse jogo requer um tipo específico de inteligência. Entretanto, o autoritarismo é uma propriedade sutil cujo estado latente pesa pouco na consciência...

A menina, embora muito nova, já havia aprendido com os pais o valor nutricional da obediência. Faltava ainda a lição acerca dos aborrimentos. Entrou no casarão e disparou a perguntar: “Por que acontece isso? E aquilo outro?” O patrão ordenou que a menina fosse caçar gelo pra enxugar.

A filha do caseiro segurando um pano de prato úmido e uma pedra já quase derretida por inteira:

“Assim está bom, doutor Marcos?”

O médico ex-comunista; A inocência da pequena; A vida em sua dimensão literal.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O Detritívoro

Não se tratava de um trabalho desgastante por natureza, mas Frederico, minucioso como nem sei, acabava por sentir o peso do labor em suas costas. Pouco se importava. Em clara oposição aos seus contratantes, muito sabia ele a respeito das sutilezas, das mil técnicas envolvidas no processo. Não sendo dotados os leigos dos devidos critérios de apreciação, era na feição da própria “mercadoria” que esse rapaz buscava o reconhecimento pelo serviço bem feito. Sim, mercadoria entre aspas, vá lá.

Sonhava em conhecer atrizes, o menino Quico. Ou mesmo em ser uma estrela dos bastidores da moda... Acontece que a vida real é uma pedrada no supercílio. De qualquer maneira, Frederico seguia feliz. Bastava um pincel e algumas cores para o tal milagre... Que sensibilidade! Sua crescente auto-estima transformou aquilo que era um garoto franzino, enleado, em um profissional que sabia se impor – ainda que nem sempre de maneira muito profissional. Passou a trabalhar em uma empresa de grande renome na praça, tornou-se um galanteador. Quando faziam troça de sua opção sexual, Frederico respondia classudo, sempre com um sorriso no canto da boca: “Sou onívoro, bem.”

***

– Como vocês podem perceber, há uma aura de quietude, vejam – o agente passando as costas da mão no rosto do finado.
– Sim, a mais pura serenidade. Aliás, eu arriscaria dizer que, pelo semblante, foi uma passagem amena – a secretária olhando para os presentes, caçando de alguma forma a aprovação de seu comentário.
– Câncer. Ele sentiu muita dor – a viúva assuando no lenço negro.
– É, mamãe, mas ele está com uma cara ótima...
– Verdade – o agente um pouco aliviado –, essa é a marca de Quico. A felicidade do falecido: trata-se da assinatura desse grande artista, não é à toa o nome de nossa empresa.
– Quero congratular esse homem pessoalmente, faço questão – ponderou a viúva rica, agora com as lágrimas secas e os soluços em digestão.

Os cinco que ali estavam seguiram para a sala de maquiagem – fazia também parte do grupo um guri que, com seu pirulito espiral multicolor, parecia não entender ou não ligar para a funebridade da situação. “Ué, trancada?” Após uma segunda investida, Marlene, a secretária, acabou por tropeçar sala adentro com porta e tudo. Num movimento rápido, porém não menos desastrado, tentou disfarçar o indisfarçável. Seu corpo bloqueava a entrada a todo e qualquer custo. A intermitência de sua voz confirmava a modalidade cretina de sua intervenção:

– Este é um... Um procedimento raro... Última tecnologia... Importada, nova, única... No que diz respeito ao... É... Ai, meu bom Deus...

Tarde. A cena não fora das mais amenas. Nem o guri se manteve alheio: o pirulito caiu no chão, partiu-se em pedaços. A visão de um cadáver nu se faz compreensível, obviamente, tendo em vista os procedimentos de qualquer funerária. Mas o que dizer de um anatomista em igual condição? Isto é, igual se desconsiderarmos o fato do rigor manifestado em uma dada região de Frederico não ser exatamente do tipo mortis... Que coisa.

***

Na delegacia, o propietário da “Final Feliz” balburdiava seus últimos sermões ao agora ex-empregado:

– Já fiz o que podia por você, Frederico. Imagina se isso sai nos jornais... Seria o fim! Eu te adiantava salário, assinava sua carteira, tudo bonitinho... E você me apronta uma dessas!
– Eu não fiz por mal... Ossos do ofício, sabe?
– Como é, rapaz?!
– Ora, seu Agenor, não se faça de desentendido. E os sorrisos? Da onde o senhor acha que vinham os sorrisos?

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Luto

A mãe se enfeitou inteira e bebeu veneno. No outro dia, o sol brilhou normalmente. A filha, ao perceber tamanha indiferença, encheu-se de rancor: jurou – com os pés bem juntinhos – distribuir sua mágoa, em porções desiguais, para cada um que lhe mostrasse a cor dos dentes. E assim o fez. Ao longo de toda sua vida.