segunda-feira, 29 de março de 2010

Sob o céu da Juliano

Os levantes raramente atingiam tamanha proporção. Vez ou outra tinha início um quebra-quebra no refeitório, se ateava fogo num colchão e só. Mas aquele foi um badernaço dos grandes. Enfermeiro é bicho ruim, tem critério pra sarrafo não: romperam até o baço dum catatônico, pode? Quanta injeção, quanta gente gritando de choque na cabeça... Que horror.

Luiz conheceu Babi nesse dia. Mesmo impregnado, correu pela colônia, se embrenhou na trepadeira de flores azuis. Não tinha espinho ali que magoasse o homem. Luiz no meio da tormenta, contente feito pinto no lixo. Arrancou a roupa fora, comeu terra, riu da chuva. Um ziguezague sábio, devir completo. Daí o muro na frente dele: caiu Luiz no pátio das mulheres.

Ela ali, debaixo daquele temporal, encolhidinha num canto. A cabeça careca e bêbada, duplamente marcada pela brutalidade médica. Luiz faz carinho, diz que é pra ela não chorar, que um dia ela vai poder voar e tudo ficará bem. Luiz, bom de estória que é, contou do mundo. Ali não tinha espelho, batom, nada. Mas ela se sentiu bonita, o flerte do moço tão doce...

Luiz é “doente mental”, dizem. Ficou assim porque a filha morreu. Babi é subversiva, presa política. Agrado de pele começando e ela pensando se aquilo era certo. O corpo tem vida, ora. Mesmo afogado em Haloperidol. Por meio do gozo, uma aula de desvanecimento: a velha que morreu de sede na enfermaria, a matilha de lobos brancos a currar as internas... Lembranças que somem; pesadelo que pausa. Socos e pontapés pelos corredores. E lá fora, com direito a Santa Bárbara e São Jerônimo, um encontro invisível sob o céu da Juliano.

Parece que os terroristas assaltaram um banco importante, algumas mãos foram devidamente molhadas no hospital. Babi acabou “fugindo”. Outro que escapou depois foi Luiz, mas por conta própria. E não é que os dois se esbarraram na cidade? Babi bem melhor, abraçou o Luiz, chorou muito. Disse que ia voar em breve, igual ele tinha falado. “Nem México, nem Argélia... Vou pro Chile, pro Chile do Allende!”

Babi levou Luiz pra tomar banho na casinha da Rua Alice. Luiz disse que gostava muito de xampu, cama, fruta, de refrigerante e do mar. E que ele só ficava assim, sujo e aflito, quando cismava com uma coisa muito triste que havia acontecido. No chuveiro, Babi beijava o corpo de Luiz como se aquilo fizesse parte da limpeza, tentativa de lição acerca do direito de esquecer.

As torturas e as resistências não têm medida. Vai saber quem aguenta o quê e o tanto. Babi pensando se a nau dos loucos, com a vela que for, desembarca nalgum porto. E agora foi Luiz quem chorou. Fruta sem gosto, xampu sem cheiro... E tome soluço a tarde toda. Babi fumando na janela. Foi uma broxada muito honesta.

Atrocidade na moda pelas bandas do sul: deu setenta e quatro e Babi teve de sair fugida outra vez. Coitada. Rumando pra Europa ela mais o filho pequeno, os dois só com a roupa do corpo. Hoje é arquiteta e ainda manca daqueles tempos. Luiz morou na rua. Pneumonia, fome... Teve o seu punhado de morte em vida. Depois virou pescador, a cuca quase sã. Muito ainda chora pela filha. Cama, refrigerante, tudo se desfaz no desespero. Menos o mar. O mar nunca.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Trevisiana

Foi sem mais nem menos, seu moço... De repente, sabe? O sim ele já disse foi mais de três vezes. Casamento é salgado, quem não sabe disso? Inda mais o Zé, que teve tantas antes de mim... O homem saltava de barraco em barraco caçando quem não falasse da pinga dele. Largou cria nesse mundo, parece que quatro ou cinco. Coitada daquela outra uma. Lavando pra fora, os dedinhos surrados, já viu como fica? O punho também estraga. E o Zé descendo as pensões pela goela. Se falido, tomava fiado, secava até garrafa macumba. Eu, por benção do senhor, vim ao mundo com o bucho podre. Trazer alminha pra apanhar já desde cedo, jogar menino nesse mar de vara de marmelo? Deus que me livre.

O Zé me engabelava fazia tempo. Chegava em casa cheirando à pouca vergonha, só queria o de comer. “Não tem janta na casa dela? Feijão de meretriz é ralo?”, eu perguntava. Coitada de mim, as bochechas inchadas da mão do Zé. Feliz era o dia que a embriaguez pesava forte. Aí eu dava nele: bassoura, garfo de passar bife, vaso de flor... Tudo, tudo. Faltava um rolo de massa lá no meu cafofo, daqueles de filme... Você já viu um de verdade? Nem eu. Meu macarrão já vem feito no pacote.

Olha... Eu sempre dizia que o Zé não era uma pessoa ruim. Só quando aborrecido, né? Pois então. Sabia ser meigo, uma vez me comprou até um estampado. De loja, hein? Dirigiu ônibus, vendeu na feira, carregou tijolo. Trabalhando ele ficava manso, via novela mais eu. Bem sabia do agrado que deixa a mulher feliz. Segurar um tempo bom no batente é que era difícil. O capeta falava no ouvido dele, carregava o homem pro bar. Daí tome cachaça, tome despesa, tome corte no olho... Um vizinho meu teve dó, veio oferecer ajuda. Azevedo era o nome. Falava calmo, sempre de terninho, o livro preto debaixo do sovaco. Precisa mais? Não é que o Zé me vira crente!

No começo foi um alívio. O Zé parou quieto, passou a botar comida na mesa. A madame enxergou no meu rosto, notou que algo me tinha acontecido: o serviço rendeu! Até promessa de aumento eu escutei. Só que tudo que sobe... Desce! É ou não é? Eu não agüentava mais cantoria na igreja, ouvir falar disso e daquilo outro, ter que usar tal e tal roupa, não ir pra ali nem pra acolá. Amor era só no escuro. E como é que faz igual no livro se a mulher não pode dar fruto? Maria Santíssima, o José deu pra pirar a cabeça...

Esse povo oito e oitenta, conhece? Zé que nem um furacão. Cana eu não sei como não pegou. Fez uns biscates, mexeu com bicho, com roubo, com tudo. A lata sempre cheia, Doutor. “Um dia inda morro desse Zé”, pensei. Daí aconteceu, seu Peçanha... O Zé tava raivoso, escumando feito cão. Quem me conhece sabe dessa carcaça aqui, ó, toda roxa de safanão. E já tava o livro em cima da cama outra vez. Maldição. Eu não dava mais conta, a estória ia começar de novo. Me resolvi: peguei a navalha reservada às inimizades dele... Feitorzinho de costas pra mim, metendo a gravata pra se fazer de santo. Cortei o Zé, Delegado. Feito fiambre. Sou adivinha? Sabia eu que homem morre fácil assim? Desgracido...

quarta-feira, 10 de março de 2010

космонавт

Heróis de guerra. Exímios nadadores, ótimos ginastas... Sem falar, é claro, nos cosmonautas.

E aquelas canções? Ah, o acordeão!

Não nos esqueçamos da máfia, do borscht, dos Vladimires, da vodka, das ogivas, dos gulags, do Niva...

Se eu fosse russo, manejaria bem o meu rifle...
Fumaria um cigarro no frio.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Cães e Canções

Acerca do Ermo (Preâmbulo)

Era passando por Dourados, no rumo de Ponta Porã. O acesso ficava à direita, logo após o primeiro posto. A estrada de terra seguia paralela por algum tempo à BR-463, quebrava sítio adentro, e tornava a desembocar na pista outra vez. Não podia soltar o pé, o chão era feito costela de cabrita magra. Tomavam aquela vereda os que queriam aliviar a vida de tanta bronquice. A mais sublime das espeluncas, acreditem, ficava plantada em um dado ponto desse descaminho de poeira e pedra. Lá, sob os lampiões envoltos em celofane vermelho e ao som vagabundo de uma mesa de dois canais, se apresentava ninguém menos que a diva guarani. Centro-oeste: oceano decrépito de plantações de soja e cabarés de quinta. Nessa região, daqui para mil anos, nada de novo há de surgir. Muito menos algo que se compare em beleza ao velho número de Rodolfo no “Estrela Dalva”.

Caminhoneiros, índios, frentistas, sacoleiros, trabalhadores sem terra, ciganos, boiadeiros, capatazes, alcoólatras, pequenos comerciantes, jogadores... Gente de bem e toda sorte de moribundos. Um puteiro, correto? Inácia, a dona do buraco, sabia o quão imune às duplas sertanejas são os homens verdadeiramente duros. Não dá para chorar as mazelas da vida fazendo sempre uso daqueles que glorificam a cornice, dos que seguem fingindo que o cu do Brasil se parece com o Texas. Por esse motivo, gozava de muitas regalias a musa café. Possuía um quarto próprio, era poupada dos gritos da proxeneta, escolhia os clientes. Kerexu Munõz, “La Reina del Pedro Juan Caballero”, ou, pelas bandas de cá, apenas Rodolfo. O ás do Dalva lotava a casa com sua voz ambígua de dor e consolo, umedecia hordas de pupilas xucras.


O Primeiro Homem

Aquele não era exatamente um espelho redondo com luzes na moldura. Sendo assim, o conjunto aspirante a penteadeira ostentava um glamour de tipo muito próprio. Plumas, brincos, anéis, inúmeros colares – uma conta para cada vez que teve vontade de morrer. No canto, um recorte desbotado com a foto de Ney Matogrosso. Nem sombra de cigarrilhas importadas no cinzeiro, apenas os restos de Calvert manchados de batom. Rodolfo estava prestes a entrar no palco, fazia seus últimos retoques. Quem se pinta para ganhar a vida sabe o tanto de digressão que cabe em cada etapa do processo. Infrutíferos são os dizeres que ousam se aproximar do mistério da maquiagem... Ela sentiu o vulto com a nuca:

– Ai, que susto! Seu demônio, coisa ruim... Quer me matar do coração?
– Rata velha! É tu que mata os outros – o homem com as mãos nos bolsos, sorrisinho de patife miserável.
– Vai entrando assim no meu camarim, sem bater nem nada... É doido, é?
– Camarim? Achei que aqui era o seu quarto.
– Essa parte do meu quarto é o meu camarim. Cretino.

O homem bulindo nos bibelôs. Uma inquietude enxerida enfeitada por gestos secos e rudes se fazia mais do que presente, não o deixava parar por nada.

– Me diz uma coisa... Rodolfo? Que estória é essa agora? Isso não é nome artístico...
– O nome sou eu que escolho. Eu sou a estrela dessa merda – o trago foi raivoso, veio com um pouco de filtro e provocou careta.
– Devia então era se chamar Dalva! Rodolfo não dá, é feio. Tem que arrumar um nome que case bem com você... Aliás, Kerexu, você não é toda índia, é?
– Não. Aqui corre sangue europeu, ó. Meu avô era um negociante rico, fazia parte nobreza.
– Nobre? No máximo um corsário fingido de espanhol, devasso mouro que entrou no mato e catou a sua avó no nó.
– Que seja. Cadê? Você trouxe?
– Essa raspa de parede ainda vai te custar caro...
– Anda, passa pra cá que já chegou minha hora.

Rodolfo dosou com a unha o salpico de nariz. Apressada, rolou escada abaixo e foi correndo encantar serpentes.


O Segundo Homem

– Alou? Com licença... Pode entrar? – o homem tímido segurava sem jeito o boné da Ivomec.
– Pode, meu bem. Sem acanhamento. Sente aqui do meu lado e me ajude com essas fivelas.

Os interessados passavam pela avaliação minuciosa de Inácia. A grande maioria era encaminhada às outras meninas da casa, apenas uns poucos obtinham permissão para subir e conversar com Rodolfo. Naquela ocasião, o homem mal entrara no quarto e já havia obtido a aprovação imediata da musa. Mesmo o piso do aposento não estando dos mais limpos, o homem se preocupou com o barro de suas botas. Aprovadíssimo. Por vezes Rodolfo inspirava cuidado nas pessoas. E esse era um critério decisivo.

Rodolfo não tinha seios. Apesar de seu corpo ser longilíneo e suave, ficavam evidentes alguns traços masculinos. O homem se espantou ao despir Kerexu: o sexo era exatamente como o das outras mulheres. Assim como as melhores transas, aquele corpo permaneceu para sempre enigmático.

– Você acha ruim se eu ficar mais um pouco?
– Olha o potrinho carente... Você gosta de coceira nas costas?
– Gosto.


O Último Homem

Ela ouviu o barulho, achou normal. Alguns marmanjos gostam de cair uns sobre os outros, se arranham em infindáveis medições de pau. O que chamou sua atenção foi a mudança repentina, um tipo qualquer de silêncio póstumo. Os toques à porta soaram sarcásticos, a madeira transmitia a intenção perversa. Foi o tempo de Rodolfo alcançar a arma na cômoda.

– Solta esse brinquedo – o homem com sangue na roupa, sereno até.

Veterana, a índia conhecia bem o resultado dos dados. Fazer o quê? Fugir? Dá um tempo. Onde é que se arruma força pra botar banca de esperta numa hora dessas? Rodolfo estava cansado. De ir e de ficar. Uma canseira absoluta, não tinha jeito. O show era só um galho que escapava à lama... Foda-se.

– Fez bem, índia. Olha só essa peça! Beretta prateada do cabo perolado: bem a cara de uma puta paraguaia. Calibre 635. Além de feia, costuma enguiçar – o homem expeliu um cuspo enquanto contemplava a arma –, não vale cinco mangos. Vou testar ela em você. Se falhar, te deixo seguir viagem.
– É um canil, não é?
– O quê?
– O mundo... O mundo é um canil.
– Não sei. Mas eu vou pensar nisso, índia. Vou pensar.


Acerca do Ermo (Posfácio/Epitáfio)

Do Dalva não sobrou muito. Uma ruína no pasto, pilha de restos outrora musicados. Alguém aí acredita na memória das coisas? Quem quiser pode ir lá estudar os ossos.