quarta-feira, 21 de julho de 2010

Ana Bolha e Zé Cotoco

O pedaço graúdo fica no meio: “Aqui, não careço de caprichar”, foram essas as palavras do Pai, sincero ante o próprio agastamento. E, num faz-que-repete, deu cabo da massa, dum povinho parecido. Se assim não fosse, no bucho não pesaria o tal do mundo, e aligeirado far-se-iam os tempos, dado que bosta sem liga não tarda a sair.

Já nas duas pontas, a conversa foi outra: “Ali, me apetece uma tribo de agraciados.” E assim vieram, o buraco do cu voltado pra lua, mas nem por isso menos dispostos à iniquidade. “Acolá, um naco de mofineza, que só mesmo a desdita pro caldo vingar.” E voilà: a peleja é travada, o tempero é puxado, e de nada adianta culpar o Cão.

Assim como todas as fortunas podem passar pelos que estão a sós, nada impede a degustação da lama a dois. Eis a face complexa do arranjo, a parte volátil de todos os ditames: o que é o amor, senão um deboche? Ora, não há desventura que não se suste em virtude duma benquerença, pois sendo forte o grilhão, é fatível sorrir de volta pra quimera que for.

Consentir com o fosso não foi à moda de parto, mas trivial até. Em coma afetuoso, um com outro e o outro com um, Zé e Ana plantavam flor no vaso de qualquer calamidade. E não se trata de superação, que as mazelas muitas não cessam o doer. É o absoluto, o máximo d’alma: carne que desaprendeu o tosco, gozo raro se espraiando no lodo e não deixando restar um pingo a não ser boniteza.

Ana já veio grossa, toucinho em tudo quanto era parte. A mãe morreu ao dar à luz, e o pai, sangue no olho que ave-maria, não fatigava dizer: “Nenê o capeta, uma jaca! Sugou foi a vida da mãe, esse estrupício...” Demorou a menina pra se aguentar de pé, também pudera. Antes rolava, por vontade sua ou maldade alheia. E de seu tempo de boneca, não guardou estória boa, que é cruel o animal criança...

Zé foi o oitavo de doze, sendo o sobejo da cria ele mais outras três. É assim quando o sertão tá brabo, os infantes sempre na esquiva da foice. Mal fez sete e o rumaram pro cisal. Pingou de labuta por três secas até que a máquina comeu seu bracinho. Ô, povaréu de meninice penosa. Cansou-se da farinha, o Zé. Dando pouco pra roça, arredou o pé da Bahia e caiu pra cidade do Santo Paulo. Preto e dum braço só, Zé ainda me inventa de criar feição pela cachaça, prato cheio na mesa do patronato mesquinho. Refusavam tudo quanto era batente... Ê, Zé!

Olha que nem comer muito ela comia, era gorda de sina mesmo. Quando pensava em se enamorar, um quente de medo tomava o corpo: vergonha do azedume que tinha nas dobras. E o Zé, acometido de paranoia? Com o rabo da vista, ele tentava tirar a prova: desconfiava que estivessem encarando o seu cotoco. A dieta dos sucos quase a matou, foi Deus quem a quis bolha. Ana quer morrer, mas tem medo outra vez: vergonha só de pensar na alça do caixão quebrando. E o Zé, que deu pra queimar pedra? Magro, magro... E banguela. Se tapume de barraco valesse, ele vendia. Não se apoquentaria com essa de morada, dormitava era na boca mesmo.

Daí que se desacerta do caminho um cupido, batendo num bar-casebre desses do Capão Redondo. E da-lhe seta nos dois! Ana, que encara Zé, largou de ter dó de si. Zé vem vindo na piscadela, e o cotoco acalma, some a dor fantasma que o assombrava fazia é década. Ela na rabada, ele na malvada: num salto, boi e pinga numa boca que eram duas. Ou em duas que agora era uma.


“Zé, eu te amo tanto!”
“Tesão rosa! Leitoa cheia de prumo!”
“Você não liga deu ser gorda?”
“Eu te quero assim, sobrando.”
“Zé...”
“Que é?”
“Me come com o seu cotoco?”


Anos depois, o tempo veio cobrar o que lhe era devido, e Zé, de carcaça tão pouca, não deu conta da mão bruta do câncer. Ana, em amargura, abraçou os doces: tanto motejo nessa vida... Veio então a diabetes, que tomou parte de sua perna. Ana tinha agora um cotoco para uso próprio. E uma dor de dois fantasmas.

Antes, era a lembrança do amor que doía como um pedaço arrancado; Depois, foi a porção amputada que passou a trazer recordações da paixão. Aos poucos, Ana sucumbiu. No enterro, pouca gente. E a alça do caixão lá, firme e forte.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Carrão

Made en Trequadra 2

Dos velocípedes, o melhor. No estilo fórmula um: aerofólio, vários adesivos da Marlboro, perfeito para cavalos de pau sobre o assoalho encerado do bloco. Sim, primo egoísta é como câncer: toda família tem um caso. Por que tinha de ser logo ele o dono do “carrão”? Foda. “Não te empresto, vem pegar”, e, em plena fuga, o zura me atropela um pombo. O pobre animal enroscado no eixo, se esvaindo em penas e grunhidos inidentificáveis. Tocar no pássaro? Nunca! Rodar o pedal só piorou. Consternado, Gagau em berros: “Chama o Tiago!” E nosso primo mais velho, a par da situação, me desce as escadas empunhando um taco de bete: “Cadê? Vamos acabar logo com isso...”

Não me foi permitido assistir à eutanásia. Tiagão alegou ter enterrado a carcaça do bicho no areal da dezesseis – um desses imensos quadrados sem parquinho, sem trave de futebol ou rede de vôlei, sem significado algum. Dia vai, dia vem, e, numa dessas ocasiões insólitas que só a infância guarda, me deparo com o tal pombo nos arredores de sua cova. A ave ali: fantasmagoria a zanzar pelo super-cinzeiro-de-shopping. Sinal da cruz e pernas pra quem te quero. Duas ou três semanas de pesadelo e foi-se. Passou.

Meu primo mais novo, o mesmo do “carrão”, tinha um hamster. Pé de Pano era o nome. Daí o acidente: esmaguei o coitado com uma nave, um cacete espacial de Playmobil. O medo das consequências me levou de encontro a várias medidas insensatas, sendo uma delas a de enterrar o roedor ao lado do pombo. Aquela areia era estranha, vai que o diabo do rato também voltava... Não voltou. Castigo? Já que o homicídio não havia sido classificado como doloso, achei que iria escapar, mas peguei sete dias. Muito provavelmente devido à via de reparação que escolhi, insensível segundo o julgar de alguns: “Eu compro outro com a minha mesada, prometo.” Ora, o hamster, pelo menos para mim, deveria ser tratado como um animal de valor afetivo menor. Alguém aí já viu hamster em clínica veterinária? Não! É assim: rato a gente deixa morrer e pronto. Até comemora, dependendo do rato...

Anos depois, grandes revelações: meu primo mais velho confessou que havia jogado os restos mortais do pombo na lixeira do prédio, e que o rito ornitofúnebre não passara de um inverossímil adorno de caso. Hoje em dia, quando vislumbro aqueles ermos de areia, várias coisas me vêm à cabeça. Penso que os pombos são todos muito parecidos. E que os pássaros, por motivos óbvios, me fazem lembrar mais do Stephen King do que do Hitchcock. Penso também em cavar um buraco, em encontrar ali a ossada do rato, ou pelo menos um resquício de outrora, uma alegriazinha qualquer que seja.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Azeitona de Cachorro

Made en Trequadra 1

Quando eu era pequeno, trabalhava na casa de minha avó uma moça que atendia pela alcunha de “Lu”. Pois bem. Certa vez, enquanto fazíamos o caminho de volta da padaria, me indaguei sobre a composição daquele misterioso tapete púrpuro que se estendia por vastas porções de cimento. Tudo em vão, pois eis que não tive sequer meio segundo para examinar a curiosa frutinha. Lascou-me um tapa violentíssimo nas mãos, a babá. Em seguida, o alerta: “Larga isso, menino, que é veneno!”

Hoje em dia, de face aos trancos da vida, por vezes penso em correr nu por esses bosques planejados do Plano Piloto... Em busca de tantos quantos forem os jamelões que possam caber em minha boca.