Hoje é o dia. São sei lá que horas da manhã e o céu ta azul, esse azul julho quase agosto. Eu bem que poderia tirar a embalagem de pizza que jaz ali, enformigada, sobre a pilha de classificados velhos. Ou limpar a caixa de areia do gato. Coitado do gato... Quer enterrar as fezes. Mas não pode.
Hoje é o dia. Talvez eu não beba essa noite. Nem esta tarde. Amanhã quero acordar e provar para mim mesmo o quanto que é bom estar sem ressaca. O difícil é que sóbrio eu não me convenço de nada. Já bêbado, como dizia minha ex-mulher, eu fico cheio da razão. Tem leite na geladeira?
Sabe que eu não acredito muito nessa história de esforço? Pois é, não acredito. Não no meu, no dos outros pode até ser. Tudo que eu consegui na minha vida foi fruto do caos. Nunca consegui desenvolver essa coisa da disciplina. Há! Tão aí duas outras coisas em que eu também não acredito: desenvolvimento e disciplina. Eu acredito é na vida. Se o Brasil fosse desenvolvido, talvez existisse por essas bandas aquele seguro que paga melhor que o salário. Se eu fosse disciplinado, talvez não tivesse sido demitido. Mas eu to aqui. Vivo. Não é? Então. Eu acredito é na vida, compadre. E quem é que ta se matando por aí? Os escandinavos e os Japoneses. Dois povinhos desenvolvidos e disciplinados pra cacete... Viva a vida, viva o caos.
Essa casa ta um caos. Não consigo mais viver aqui. Porra! Nem leite tem... Ressaca do cão. Falando em cão, cadê o gato? Olha ali a tv. De manhã tem desenho. Às vezes fico feliz quando vejo o Tom e Jerry. Verdade. Dura quase um soluço... Acabou a pilha. Tenho trocado muito de canais ultimamente. Que cheiro é esse? Sou eu, claro. Tenho me trocado pouco ultimamente. Que dia é hoje?
Têm esse boicote... Meu estômago ta cansado de ser sabotado pelo determinismo geográfico. É. Em Brasília tem rua só de farmácia. Trinta e cinco delas, uma ao lado da outra. Rua só de loja de lâmpada... Ou de aluguel de roupas. Mas não tem a rua das padarias. Diabo. Não tem uma única padaria na comercial ao lado. Nem na de cima. Eu queria morar na rua das padarias se tivesse uma. Ou na rua dos empregos. Na da umidade...
Hoje é o dia. Ainda tenho cigarros. Vou fumar um café da manhã. Nossa... É o fim da picada: um sujeito que guarda esse tanto de fósforos riscados dentro da caixa só pode ser mau caráter. Nunca consegui terminar um isqueiro. Tenho perdido coisas. Mais que o normal. Fogo, emprego, peso... Que fome. Se o homem é o que come, eu também perdi minha identidade. Minha filha esqueceu meu nome. Minha ex-mulher disse que eu nunca consigo terminar nada. Só com o casamento. Minha ex-mulher... Vaca. Bem que podia ter leite nessa geladeira. Seca do caralho...
O bar é aqui do lado. Determinismo geográfico outra vez. Ta bom. Não vou beber... O dono do bar lembra o meu nome. Vou tirar fotocópias dos meus documentos e... É. Perdi minha identidade. Aliás... É hoje mesmo? Não! É ontem. Quer dizer, foi ontem... Merda! Perdi a entrevista... Determinismo cronológico. Minha ex-mulher mente quando diz que não sou um homem determinado. Ah, quer saber... Hoje eu vou beber sim. Oi, gato! Apareceu? Quer ver Tom e Jerry?