“Claro, claro que eu faço.” Sou prestimoso de fábrica, incapaz de recusar obséquio à alma que for. “Sim, eu vou, eu pego. Naturalmente. É pra já”, e por que não? Na repartição, é importante que se mantenha uma imagem bem apessoada, a postura política que todos esperam exige assiduidade, esforço. Ora, aquele que economiza nas galhardias acaba enveredando por um caminho entroviscado, pois é bem sabido que, pelas bandas empoeiradas do serviço burocrático, chove tarefa na horta dos emburrados e dos pachorrentos. É mesmo bem na linha do correcional, do pediu agora toma: “Abacaxi, minha querida? Empurra pra mesa do cretino ali.”
O escambau! Sanhudo de menos também toma, tenho percebido isso. “Ué? E não estão todos aqui convictos de que Henrique tem gosto por pica no cu? Sempre agüentou sorrindo...” Percebem? Já não sei em que esquina dobrar, o endereço do sossego parece reservado aos cirurgiões das relações públicas. Não, não é simples. A temperança é um enigma. Em meu antigo batente, atendia eu pela alcunha de “Dobra”: é que, frente às apoquentações, não podia deixar de franzir a testa. Era uma constante. Já nesse ninho de ácaros a coisa mudou de figura, resolvi passar a borracha no azedume do passado e traçar meu novo perfil. Agora sou o “Tylenol”, sirvo pra qualquer merda. Miseráveis duma figa!
De uns tempos pra cá eu vinha sentindo um palito de churrasco me furando o estômago. Não fui ao doutor. Apostei as fichas na gastrite, óbvio. Mas vai ver já era uma úlcera. Ou coisa pior. Os acerbos morrem de câncer. Os cândidos, de porrada. Os dizimeiros de virtude que sumissem da minha frente, cheguei mesmo a concluir. Bem como os cândidos. E os temperados, os equilibrados, Budas e amebas apolíneas. Eu havia decidido cessar com essa de cara a tapa... Que viessem as metástases: eu as comeria com farinha.
Aos sábados eu costumo torrar certa percentagem do soldo no carteado. E foi um colega de mesa, o Cambeta, que me alumiou o raciocínio. “Henrique, meu prezado, só sente a pressão quem acredita não ter pra volta. Não é a toa que se dá o nome de ás na manga pras surpresas que deixamos ali, quietas. O tempo, cabra bronco, só faz apurar a grandeza do trunfo.” O valor terapêutico do alvitre se mostrou mais eficaz do que qualquer bicarbonato. Inicialmente, pensei em garimpar um podre aqui, outro acolá. Em dar um trato na cartola para, na hora do assédio, sacar um coelho que ninguém quisesse ver. Mas isso seria, forçando bem a barra, uma manilha pequena...
Cara de zap tem a minha Berettinha que agora tenho na gaveta, lindeza do papai. De hoje em diante, o fuinha que solicitar trampo de quebra galho vai é cuspir goma pela testa. Ou não, que o meu brinquedo, por enquanto, é só um reforço fantasioso. Quando muito, ao desgostar dum encargo, me ponho a alisar a bicha, faço carinho na pretinha. No pico da cólera, mãe Marluce ensinava os filhotes de urubu a contar de um a dez... Hoje chego até quinze, que é o tanto de bala que vai no pente. Ah, que isso é melhor que banho frio, maracujá e camomila. O corre dos outros eu ainda faço, viva o Zé bonzinho. Mas nessa de bullyng eu não me enquadro, a moral aqui vai bem, não baila por pouco nem carrega no lombo. Vez ou outra o sorriso ainda amarela, vá lá, mas o que importa está na caixa, e, se pá, de meio pau isso cai pra doze: “Fica de gracinha, fica. Ó que eu torno, feladaputa!”
MUDANÇAS
Há 6 anos