segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Ele, Ela, e o Prestadio

Ele, Onofre. Ela, Ciça. Como se chama o que vem depois das bodas de ouro? Melífluos um com o outro até o fim. Que exemplo! Não tiveram filhos, estão a sós, coquinhos brancos de mãos dadas nesse mundaréu de lobos. Ele, noventa e poucos. Ela, oitenta e muitos. Todos os dias um balé, sincronia no despertar dos dois. O rádio dispara a tocar música de antigamente e cada um se torce numa direção. Tateiam seus criados mudos e, recolhidos os sorrisos submersos, concentram-se num oferecer mútuo de algo mais que bafo matutino: um bom dia de olho, um quero morrer primeiro.

Depois de alguns toques, o porteiro atende. A velhinha encarecida: “Seu Emídio? É o chuveiro de novo, seu Emídio. Choque? Não, não. Parou foi de funcionar de vez. Oi? Queimou a resistência?”

Onofre lê jornal, escova a botina, dama na praça. Faz queixa à esposa. Na feira, Ciça e a sacola, passinho de quelônio. O almoço vem vindo e cadê o de comer? O tempo. Eita lebre que não dorme nunca... Faz queixa ao bom Deus. Ele, gota. Ela, artrose.

“Seu Emídio? A pia, seu Emídio. Como? Ah... Cifão, é?”

O calendário se afinando, uma distraída e pum! Passou-se o ano. E outro. Quem é que não tem medo? Tudo igual, igual, igual. Ele, boina. Ela, xale. Daí que veio uma noite... Pode? Vou contar. Na sala, um sofá encardido. Por cima, enamorados em hiato de quase uma década. Números diminutos, botões amontoados. Estes aparatos! Nem a vista, nem a tremedeira colaboraram: o controle remoto entendeu um endereço estranho. “Onofre! O que é isso, Onofre? Eles estão... Gente! Olha o tamanho do... Ele vai... Jesus, Maria, José!” Imaginem só. Enrubescida, leva a mão à boca. Ele, saliente. Ela, um pouco mais.

“Será que o senhor poderia dar um pulinho aqui? Foi, soltou outra vez. Agradecida, seu Emídio.”

E foi assim, quase dois meses de um vivaz descomedimento. Onofre com dor no peito. São gases. Também pudera. É gemada, amendoim, marapuana... Até trago de catuaba tomou. Na farmácia: “Tem do azul?” E dona Ciça, que inventou de ir à praia todo dia de sábado! Com a amiga mais nova do bingo, gabou-se: “Menina do céu... Lá em casa tem fogo, viu?” E o velho, numa sexta-feira dessas, ficou duro e não amoleceu mais. Que transtorno. Mudou-se Onofre para uma gaveta lá no São João Baptista. Ele, poeira. Ela, saudade.

Dizem sobre estes casais matusalênicos que, quando um sobe, o outro não se demora a partir. Triste, triste. Comida perdendo, a cama grande que só. E o que fazer com as roupas? Uma vez, reparou nas pantufas do finado, lado a lado como sempre ficavam. Ô, dó. E a coceirinha? Essa não cessava. “Mas será o Benedito! Logo agora que meu velho se foi...” E o canal, qual que era mesmo o canal?

“Seu Emídio? Desculpe o horário... Pois é, um servicinho rápido. Chegando aqui eu lhe explico. Tem graxa aí, seu Emídio? Não, não. Emperrou nada, tá funcionando que é uma beleza. Ai, seu Emídio, o senhor é um Santo!”

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