segunda-feira, 18 de julho de 2011

Bufão é aquele que muito ofega

Paçoca porque vende paçoca, daí o nome. Vende um caralho de coisas no sinaleiro, mas Caralho não daria um bom nome. Ainda mais saindo da boca dum guri ao gritar o palhaço. É pirulito, algodão doce, chiclete, estalinhos, e... Não, algodão ele não vende mais, ninguém comprava.

Foi-se o tempo da palhaçada: o riso é impagável, dizem. Agora ele é só um veículo, um merchandising. E é entre os veículos que o Paçoca cai no reverso mambembe, itinerante agora são os outros. Mas cair não é graça que se faça mais. Sob a lona tinha até sentido, mas sobre ela não dá. Nariz inchado ainda rende, knockout jamé.

Setor comercial, rodoviária, CONIC. Esse sim é o circo do sol. Não fosse a umidade a dez por cento, a fronte danaria num pinga cor... E não tem nem o diabo duma coxia pro palhaço chorar sozinho. Vai que vai, Paçoca, o outro um já buzinando ali atrás. Abriu, não tem troco, faz mais barato, se agiliza. É a luz verde, o sorriso amarelo e a conta no vermelho. Tem nada não, meu nobre. O buguelinho da Combi escolar até sorriu... Ou foi um soluço?

Palhaço dá medo, há muito corre esse boato. Mas a trupe também se borra, anota aí. Já foi o sol, cadê a lua? Olha o Paçoca no meio da vida. É assim mesmo, sem rima. A paródia vai além: ele num carro onde cabem tantos que ninguém imagina, meiazerocinco para Planaltina. Ah, a rima... No fim de tudo vem sempre a mesma surpresa. Afinal de contas, resta sempre o rir de si. O auto-escárnio — quase inofensivo, é uma pena — que se faz inalienável.

Ontologia-tautologia-troféu: antes de se deitar, ao tirar a pintura (que, de fato, não sai nem com o aguarrás da indiferença), Paçoca se lembra que o melhor do palhaço é o seu quinhão palhaço. Vinte e nove anos na mesma e não lhe causa enjôo o amendoim.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Êxodo

Cidade do interior, cada um bem sabe o andar do outro. Nem se carece de quebrar a esquina pra ver o que vem: de certo que é casa assim assada, um rosto adivinhado. O turismo rende bocados, em feriado chega a sair gente pela clarabóia. Lá tem mato e queda d’água, festejo e procissão. E pedrinha, daquela que onda e fissura se embolam numa coisa só.

Tião era um sorriso que ficava ali pra cima, no bar da subida do Carmo. Sempre um punhado de gente no recinto, o povo se esgueirando na sinuca, sorvendo os goles fiados. Eu mesmo casco nunca levei, que por lá sempre foi na confiança. Era chegar e cumprimentar o moço, Tião e seu cigarro de corda no papel de caderno. “Fala, meu querido!”, “Valeu, meu bom!”, e era isso. Não precisava mais pra saber do quão de bem era o homem...

Nesse Brasil não tem um canto que falte alma atrás dum zunido no pensamento, a pedra parece meter o dedo em toda ferida que há. Crack, padre e a bolsa do governo: na família era cada um com seu graças a Deus, e, pro Andrezinho, parece que sobrou da parte pior. Seu Tião tomou conhecimento do vício do filho quando era tarde, o menino já tinha feito tombar pro lado do desvario. Oh, meu Pai... O André ruim que só amarrando na cama. E Dona Elzinha em reza vazia...

Numa dessas que ninguém sabe dizer como, o menino não me saiu pra rua? Andrezinho com os olhos faltantes e uma faca na mão. De maldade não foi, que surto é surto, mas vai querer explicar o porquê para um pai desconsolado... Quando o guarda viu, não tinha mais jeito. André mudo feito beata em sermão, de sangue dos pés à cabeça. Coitado também do pintor de parede: Amaro tinha 56 anos e morreu de graça, picado na porta de casa. Mas mesmo assim, não sei bem explicar, me apiedei foi do assassino. Ah, do pai do pintor eu também tive muita dó. Senhor de idade agüentando a morte matada do filho, um tanto assim de ruga e melanoma abraçando a netaiada aos prantos...

O menino foi levado preso, claro. Mas em cidade pequena, vocês sabem: seu Tião saindo fugido, sem tempo de ajeitar nada. Não tinha terminado nem de pagar o freezer do bar. A mobília do quartinho também ficou. Estória e camaradagem, tudo largado pra trás. Sabe-se lá o rumo a que vida desse um vai tomar...

Eu penso muito na figura do Divino que ficava ali, na parede de fora mesmo — o bar era só uma varanda, nem mesa tinha. Essa rolinha azul, de madeira, que viu tudo paradinha em seu lugar. E ela continua lá. Sólida e impassível como os blocos do chão e os jatobás do caminho...

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Ter Pra Volta

“Claro, claro que eu faço.” Sou prestimoso de fábrica, incapaz de recusar obséquio à alma que for. “Sim, eu vou, eu pego. Naturalmente. É pra já”, e por que não? Na repartição, é importante que se mantenha uma imagem bem apessoada, a postura política que todos esperam exige assiduidade, esforço. Ora, aquele que economiza nas galhardias acaba enveredando por um caminho entroviscado, pois é bem sabido que, pelas bandas empoeiradas do serviço burocrático, chove tarefa na horta dos emburrados e dos pachorrentos. É mesmo bem na linha do correcional, do pediu agora toma: “Abacaxi, minha querida? Empurra pra mesa do cretino ali.”

O escambau! Sanhudo de menos também toma, tenho percebido isso. “Ué? E não estão todos aqui convictos de que Henrique tem gosto por pica no cu? Sempre agüentou sorrindo...” Percebem? Já não sei em que esquina dobrar, o endereço do sossego parece reservado aos cirurgiões das relações públicas. Não, não é simples. A temperança é um enigma. Em meu antigo batente, atendia eu pela alcunha de “Dobra”: é que, frente às apoquentações, não podia deixar de franzir a testa. Era uma constante. Já nesse ninho de ácaros a coisa mudou de figura, resolvi passar a borracha no azedume do passado e traçar meu novo perfil. Agora sou o “Tylenol”, sirvo pra qualquer merda. Miseráveis duma figa!

De uns tempos pra cá eu vinha sentindo um palito de churrasco me furando o estômago. Não fui ao doutor. Apostei as fichas na gastrite, óbvio. Mas vai ver já era uma úlcera. Ou coisa pior. Os acerbos morrem de câncer. Os cândidos, de porrada. Os dizimeiros de virtude que sumissem da minha frente, cheguei mesmo a concluir. Bem como os cândidos. E os temperados, os equilibrados, Budas e amebas apolíneas. Eu havia decidido cessar com essa de cara a tapa... Que viessem as metástases: eu as comeria com farinha.

Aos sábados eu costumo torrar certa percentagem do soldo no carteado. E foi um colega de mesa, o Cambeta, que me alumiou o raciocínio. “Henrique, meu prezado, só sente a pressão quem acredita não ter pra volta. Não é a toa que se dá o nome de ás na manga pras surpresas que deixamos ali, quietas. O tempo, cabra bronco, só faz apurar a grandeza do trunfo.” O valor terapêutico do alvitre se mostrou mais eficaz do que qualquer bicarbonato. Inicialmente, pensei em garimpar um podre aqui, outro acolá. Em dar um trato na cartola para, na hora do assédio, sacar um coelho que ninguém quisesse ver. Mas isso seria, forçando bem a barra, uma manilha pequena...

Cara de zap tem a minha Berettinha que agora tenho na gaveta, lindeza do papai. De hoje em diante, o fuinha que solicitar trampo de quebra galho vai é cuspir goma pela testa. Ou não, que o meu brinquedo, por enquanto, é só um reforço fantasioso. Quando muito, ao desgostar dum encargo, me ponho a alisar a bicha, faço carinho na pretinha. No pico da cólera, mãe Marluce ensinava os filhotes de urubu a contar de um a dez... Hoje chego até quinze, que é o tanto de bala que vai no pente. Ah, que isso é melhor que banho frio, maracujá e camomila. O corre dos outros eu ainda faço, viva o Zé bonzinho. Mas nessa de bullyng eu não me enquadro, a moral aqui vai bem, não baila por pouco nem carrega no lombo. Vez ou outra o sorriso ainda amarela, vá lá, mas o que importa está na caixa, e, se pá, de meio pau isso cai pra doze: “Fica de gracinha, fica. Ó que eu torno, feladaputa!”

quinta-feira, 21 de abril de 2011

3 Amigas

É, menina. Que eu penduro é uma carranca nessa barcaça aqui, ó. Tome suor na conta da bombadeira... Na feira, é vintém sangrado que não acaba mais, tudo metido em peça fina pra depois vir o diabo do cão e rasgar na garra. A noite nesses tempos faz feito besta ingrata, dessas que, se acaba o de comer, taca o dente é no dono. Outro dia, vê se pode, pegaram a Bianca. Foi bem ali, na frente do hotel mesmo. Arrastaram a coitada bem uns quinze metros. A nega toda moída de asfalto. Joelho, mão, uma coisa... E ainda estragaram o cabelo dela, jogaram ovo e terra.

Olha que eu ainda arredo o pé desse Setor Comercial que me rói os ossos. Com aquele meu namorado, sabe? Semana passada ele veio com outro carrão. Diz que é do amigo, o dele mesmo não pode usar, a placa é da embaixada. Ó, desses quem vem de fora eu já saí com pra lá de uma dúzia... Mas esse último é diferente, nunca que o Josefe me troca por uma racha. Eu te mostrei o lápis que ele me deu? Importado, sim. Eu perguntei se era da mulher dele, o lápis e o perfume da outra vez. Faltou chorar, o meu galego...

Noia? Você quer é da latinha mesmo? Não tem, meu amor. Sei de um que ainda faz, mas é lá pra sobradinho dois. Não, só pedra. Ou... Vocês viram? Esse aí que passou parece que dormiu nos anos noventa e só acordou agora: de Kadette e atrás de lata, eu posso? Marina, colega, vamos ver se a safada da Tati ta munida? Preciso esquentar os peitos... Amanhã eu dobro lá no mercado. Olha lá! Se não é aquele cabo de polícia outra vez! Eles tão arrochando, vamos se adiantar. Eita, porra...

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Stranho em crise

Estuprar a própria criatividade é um mandato cultural para aqueles que têm a palavra como única alternativa.

segunda-feira, 14 de março de 2011

O Sr. Moura

O senhor Moura é, como ele mesmo coloca, um enxergador de verdades. O sujeito que quer aprender a separar o joio do trigo não pode se afeiçoar por demais às branduras da vida. Isso também foi o senhor Moura quem disse, ele diz um bocado de coisas. Sim, é bronco no talo, quem conhece a peça sabe muito bem. Daí que não é surpresa ser ele um animal de poucas companhias. Mas o senhor Moura, não raramente, espraia um facho de lampião nesse negrume perene que é o mundo. Seu verbo firme tem arrumado a barafunda de muitos cocos por aí. Da embolada sai ônus e bônus; vem malquerença, vem o peso dos bocados em seu bolso.

Aforismo N°1 do Sr. Moura: “Todo homem é um assassino, mesmo aquele que pede licença antes de enfiar a pica.”

O senhor Moura agencia garotas. Tem a parte burocrática, que consiste em arrumar uma clientela razoavelmente distinta, e tem também a fatia braçal da coisa, já que e o próprio senhor Moura quem dá cabo dos mal entendidos. Vejamos: um bacana querendo curtir com as donas. Sujeito polido, mil poses frente à lente da distinção. Mas a noite, cedo ou tarde, escancara sua bocarra. A farinha se acumulando no cocuruto da razão, os ânimos celebrando todas quantas são as hipérboles descabidas... Se não é equívoco de butuca, ali, a um passinho só da figura, então eu não sei o que é. Aconteceu. O senhor Moura se faz entender, evita prolixidades:

— E desde quando, seu piolho de estrume, amassar cara de puta faz o pau subir?

Pronto. Mais um engravatado alocado nos eixos, urinando vermelho e tomando sopa de canudinho. Por essas e outras, a porção carpada das raparigas é gorda.

— Quem arranca a mais-valia duma ordenhadeira de porra não pode ser chamado de herói. Nem de protetor. Não forneço segurança, o prevenir fica a cargo do látex. Mas o remediar é comigo mesmo, ofereço paliativos em doses variadas. E a preços nada módicos, confesso. Neste ramo, é de praxe a terceirização da vingança.

Aforismo Nº2 do Sr. Moura: “Um leão que sempre comeu cenoura continua sendo um animal carnívoro.”

O senhor Moura, tendo em vista o muito chão que rodou, desenvolveu um bom faro para espécies iníquas. Jogador de futebol em suíte de hotel cinco estrelas? Melhor esperar lá em baixo, às vezes complica. Personalidade carimbada exigindo discrição e marcando encontro em cabeça de porco? Olho vivo, capadócio. Se o bolo desanda, é bom estar a postos. Cliente gordinho, do tipo calmo e de suspensórios? Desses que pagam mais, fazem carinho e chamam para jantar? Pode escrever: vai dar merda.

— Sabe como é... Ele dá bom dia ao vigia da rua e o chama pelo nome; Compra um violino e um pônei para consolar a filha diabética; Pinta miniaturas de embarcações do séc. XVI enquanto leva o casamento no sapato, um traveco aqui, outro acolá... Mas tudo isso é só até a hipoteca vencer. Daí o carequinha pira, resolve desembestar para um motel e espalhar as tripas de uma vagabunda qualquer pela parede. Adianta bagunçar o rosto de um sujeito desses? Existe castigo para quem vira gente pelo avesso? Quem sacaneia com as entranhas de alguém não tem, geralmente, muito a perder. E a megera castradora que ele guarda em casa? Se não dá para evitar a catarse, que vá ele fazer arte moderna no bucho da própria puta. Não, esse tipo eu veto.

Aforismo Nº3 do Sr. Moura: “Todo aforista acaba descobrindo que umbigo é um problema seriíssimo.”

O senhor Moura vive em constante vigília. Tão acostumado com a tarefa de credor, perdeu o tempo da hipoteca de seu próprio corpo. Com o ópio primordial fora de seu alcance, Moura passou a pesar na mão, na dose de tudo quanto é coisa. “Essa bala aqui é para alinhar os meus pensamentos”, ele diz. “Pense nisso como um seguro dignidade”.

— O sexo é causa e conseqüência da dívida. A dívida é causa e conseqüência do erro. O erro é causa e conseqüência de quem não percebe as duas relações anteriormente citadas. E isso, veja bem, porque o sexo é um remédio sem o qual não há carcaça que perdure. Não é à toa a cobra da medicina, sanando e matando em seu fálico desfile sobre o fio da navalha. Mas cuidado com o esforço: a vida, em si, já é um paradoxo fatigante.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Tavariana

(Goodbye, Gonçalo)

Emanuel Filho é um cálculo equivocado, e disso ele se apercebeu quando ainda criança. Fizeram-no entender. Como uma sombra que confunde, sua mera presença bastava para que os em sua companhia tomassem direções inexatas. “É um menino de caráter canceroso, de palavras e ações que se instalam em sítios inapropriados.” Não é fácil crescer dessa maneira. Atravessar a infância sendo o portador desse diagnóstico é, no mínimo, uma proeza de tamanho médio.

As pessoas, em sua esmagadora maioria, entendem o mundo com olhos gerais, com os olhos de muitos. É uma herança ocular que se recebe. Mas essa, tão fundamental para seguir os caminhos ofertados pelo projeto humano, foi negada de antemão ao garoto. Emanuel concebeu um percurso para si. E o fez com apenas dois olhos.

É este o nome dos caminhos dotados de fisionomia vulgarmente própria: erro. Todavia, Emanuel nunca abraçou o engano absoluto. O desprezo necessário para tal é do tipo ativo, e em muito difere da condição aqui tratada. Emanuel não é um sociopata. Não pelo lado interno. A diferença é um objeto complexo, imbuída de muitos esforços. Emanuel: matéria prima a ser processada em várias etapas. Sim, existem máquinas para isso.

Um grande proprietário: além de seus próprios, Emanuel detém a mais valia dos erros alheios. É um tanto pesado, compreende? Mas aquilo tudo era necessário. O erro, quando certeza, traz consigo uma calma, uma paz. Paz de testas enrugadas e olhares reprovadores, isso é verdade, mas que atinge um nível máximo de precisão: “Errei, não foi? Sabia!”

[Fim da autópsia do cyborg]

Talvez, no fundo, não exista escapatória. O caos está, pouco a pouco, morrendo asfixiado. A besta geométrica analítica está faminta. Seremos engolidos. Nós: restolho digerido, coordenadas. Tornar-se-á óbvio, então, o caráter neurótico de tudo.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Hormônio e Penitência

Catarina é cria de um sítio inóspito em afeto, mundão áspero de tanta insciência. Lá vai a menina, doze pra treze, a penca de porquês em branco se arrastando pelo chão. A freira segue atrás, vai por a interna na cama. Todas elas dormem assim, grampeadas. É ordem da madre superiora: as meninas devem ter seu vestido fixado ao forro do colchão. “Não pode virar de bruços, Catarina. Deitar-se assim é pecado, estimula os seios...”

No Sacre Coeur de Marie tem aula de francês, de piano, de bordado, de silêncio. As irmãs e suas réguas: métrica boçal do interdito e do castigo. É injusto o quinhão de ferida... Ontem, Catarina foi pega fora do leito, estava a brincar com a colega. O joelho no milho, a cabeça na noite. Não, não tem culpa nenhuma ali. As freiras também se tocam, Catarina sabe. Reza pra quem essa menina? “Senhor Jesus filho da puta...” Mordisca os beicinhos, pede ela a graça de um milagre torto.

Catarina cresce. É um desatino que vai pegando, é a tal da ânsia. Hormônio e penitência. Nossa menina fita um grupo trabalhando em uma contenção, o olhar da pequena pousando num rapagão vistoso, um que deixa escapar assobios por debaixo do bigode. O moço limpa o suor da fronte enquanto caça um acaso: em quem que a vista desse um bate? Catarina palpitando, e não é pela aritmética. À noite são dois palitos para a praia, para o alojamento dos obreiros, para dentro daquela coisa que a gente sente como um absoluto. A menina gatuna, o muro do internato ficando baixo. Uma. Duas. Três e se acostuma, toma gosto por aquele fazer. Corpinho nu ofegante. E o moço do lado, a boca grossa capixaba soprando canto de congado pelo escuro afora. O Espírito Santo, naquela época, era mais vadio um pouquinho. Mas foi curto esse tempo. A encosta ficou segura, lá se foram os homens da ilha.

Catarina disse para a professora que estava doente, que há dois meses não fazia uso da toalhinha higiênica. Pois não é que mandaram a menina para o continente? A agulha do doutor picando um bracinho, tudo meio embaçado. Foi só tirar o curativo da vagina que a sangueira doida foi descendo, suco de guri no vaso sanitário. Faltavam as páginas sobre reprodução no livro de biologia, o saber já vinha amputado pelas freiras: para Catarina, aquele capítulo faria o sentido do vermelho negro em suas coxas.

Catarina para fora do colégio. Expulsa ela não podia ser, que o pai rico doava quantias ao convento. Foram as irmãs do colégio que a convenceram de que ela não queria mais estudar. Deus e os exílios. Mas Silvio, homem sério que dava peso ao valor da verdade, não podia ter ciência da mão religiosa dessa desistência. A menina espremida entre as palavras de ordem. Qual pai se desagrada mais nessas horas?

Catarina na ponte. É a ponte e é o rio: espremida outra vez essa uma. A vida também é vertiginosa, não é qualquer um que pula. Catarina casou. Teve cinco filhos, um pouco de amor e um punhado de hematomas. Ainda vive por aquelas bandas. Ainda se lembra do moço que assobiava Ademilde Fonseca. Ainda toca piano. Ainda acredita em Deus.