sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A troca

Mora sozinho em um apartamento pequeno. Mas é na Paulista, ora. Dinheiro, saúde, mãe, pai... E agora? Nandinho numa dessas suas aventuras. O porquê não existe. Pura boçalidade autômata. Como que para verificar: é de verdade, essa vida? Sai por aí, chuta latas, zanzando nessa cidade de coração duro que é São Paulo. Uma sarna ou outra pra ver se espanta o vazio, que mal tem?

O bom filho a casa torna, pródigo em relação à própria sorte. E a dona:
– Que bonito.
– É.

Tem quadro, sofá, tapete, televisor, geladeira, telefone: o olho da mulher brilhando. Como são lisas as paredes rebocadas. Ela viu um cobertor grosso na cama, sentiu ódio.
– A ducha fica ali – Nando teve de dizer. Fazer o quê?

Na segunda ele ia se encontrar com os amigos da faculdade. O bar: homens e seus relatos...
– Tira essa toalha e deita. De costas, viu? Por favor.
– Deita é o buraco do cu. Primeiro o prato que você me prometeu!

***

Engenheiro e dentista assistem, bem por alto, ao telejornal. Casa de praia em Florianópolis:
– Hein, amor... Viu isso? Levou a sem-teto pra casa, queria fazer sexo com ela... Um crime bárbaro. Parece que ela picou o menino todo.
– Isso agora é moda em São Paulo, a garotada atarefada da classe alta inventou esse novo desporto. Sexo com mendigas... Vai entender.

O casal comendo peixe assado. Gewürztraminer, tudo na mais divina paz. Exceto, talvez, por uma pequena falta que crescia. Ah, sim, o menino... Mobiliado o apartamento, Nandinho parou de ligar, não mandava notícias.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Ele, Ela, e o Prestadio

Ele, Onofre. Ela, Ciça. Como se chama o que vem depois das bodas de ouro? Melífluos um com o outro até o fim. Que exemplo! Não tiveram filhos, estão a sós, coquinhos brancos de mãos dadas nesse mundaréu de lobos. Ele, noventa e poucos. Ela, oitenta e muitos. Todos os dias um balé, sincronia no despertar dos dois. O rádio dispara a tocar música de antigamente e cada um se torce numa direção. Tateiam seus criados mudos e, recolhidos os sorrisos submersos, concentram-se num oferecer mútuo de algo mais que bafo matutino: um bom dia de olho, um quero morrer primeiro.

Depois de alguns toques, o porteiro atende. A velhinha encarecida: “Seu Emídio? É o chuveiro de novo, seu Emídio. Choque? Não, não. Parou foi de funcionar de vez. Oi? Queimou a resistência?”

Onofre lê jornal, escova a botina, dama na praça. Faz queixa à esposa. Na feira, Ciça e a sacola, passinho de quelônio. O almoço vem vindo e cadê o de comer? O tempo. Eita lebre que não dorme nunca... Faz queixa ao bom Deus. Ele, gota. Ela, artrose.

“Seu Emídio? A pia, seu Emídio. Como? Ah... Cifão, é?”

O calendário se afinando, uma distraída e pum! Passou-se o ano. E outro. Quem é que não tem medo? Tudo igual, igual, igual. Ele, boina. Ela, xale. Daí que veio uma noite... Pode? Vou contar. Na sala, um sofá encardido. Por cima, enamorados em hiato de quase uma década. Números diminutos, botões amontoados. Estes aparatos! Nem a vista, nem a tremedeira colaboraram: o controle remoto entendeu um endereço estranho. “Onofre! O que é isso, Onofre? Eles estão... Gente! Olha o tamanho do... Ele vai... Jesus, Maria, José!” Imaginem só. Enrubescida, leva a mão à boca. Ele, saliente. Ela, um pouco mais.

“Será que o senhor poderia dar um pulinho aqui? Foi, soltou outra vez. Agradecida, seu Emídio.”

E foi assim, quase dois meses de um vivaz descomedimento. Onofre com dor no peito. São gases. Também pudera. É gemada, amendoim, marapuana... Até trago de catuaba tomou. Na farmácia: “Tem do azul?” E dona Ciça, que inventou de ir à praia todo dia de sábado! Com a amiga mais nova do bingo, gabou-se: “Menina do céu... Lá em casa tem fogo, viu?” E o velho, numa sexta-feira dessas, ficou duro e não amoleceu mais. Que transtorno. Mudou-se Onofre para uma gaveta lá no São João Baptista. Ele, poeira. Ela, saudade.

Dizem sobre estes casais matusalênicos que, quando um sobe, o outro não se demora a partir. Triste, triste. Comida perdendo, a cama grande que só. E o que fazer com as roupas? Uma vez, reparou nas pantufas do finado, lado a lado como sempre ficavam. Ô, dó. E a coceirinha? Essa não cessava. “Mas será o Benedito! Logo agora que meu velho se foi...” E o canal, qual que era mesmo o canal?

“Seu Emídio? Desculpe o horário... Pois é, um servicinho rápido. Chegando aqui eu lhe explico. Tem graxa aí, seu Emídio? Não, não. Emperrou nada, tá funcionando que é uma beleza. Ai, seu Emídio, o senhor é um Santo!”

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Sobeixos, sobejos, etc.

Os buracos são ermos, mas nem tanto. Lá vai Venâncio, degrau por degrau, jubiloso por sentir o odor de urina dormida eriçar seus pêlos da nuca. Venâncio gosta. Segundo ele, os habitantes desta cidade vil podem ser classificados em dois grandes grupos: os que, ao cruzar as sombras dos corredores, apertam o passo, e os que vão mais devagar, delongam-se em apreciação. Ama tudo que é lúbrico, este rapaz.

É preciso reinventar os nomes, pensa. Estes subterrâneos são chances, possibilidades. Paredes pichadas, bueiros, um tanto de lixo e algumas ratazanas: constelação para se montar uma incubadeira de afetos. Lá vai Venâncio, no estômago um auspício. “Encontrem-me, quero ser tomado!” Isto não é lá uma passagem, é algo que fica, que dura. Em cada toca imunda há um pedaço que lhe pertence. Vedes aquela camisinha usada atirada ao chão? Ele fez ela, ela faz ele.

Os vultos se esbarram à noite. Pode ser bom, pode ser ruim, pode nem ser. Depende do esbarro. Venâncio e a violência. Limite, fronteira, teste... Cada qual com a tortura que lhe convém. Está acontecendo agora mesmo. Nem uma palavra sequer: esbarro, entende? É um medo, um tesão, gozo xeque. Encostado na parede, sendo penetrado e pensando na mamãezinha – pode acreditar, não é culpa nem tara. É vingança.

Tinha sete anos e não entendia muito bem. O vizinho era de confiança, tomava conta do garoto. “Olha aqui, Venâncio, vou te ensinar um jogo...” A mãe ia trabalhar de manicure. Lar doce lar: ser cuidado, ver desenho, tomar refresco, e vez ou outra ter o rabo comido. Doze anos e entendia mais ou menos. Vieram crises, ataques. “Tomou o remédio, Venâncio? Abaixa a cueca. Isso, vira, vira...” , De quando em quando dormia naquele quarto. Era hospital? Dezessete e... Entender o quê? Já viram a libido amadurar num lodaçal? É isso e pronto. Lá vai Venâncio: desvantagem é a condição do seu pau duro.

Fecha o cinto, suspira e segue. Na parede, um cartaz: “Cursos Técnicos.” Outro mais à frente diz: “Fique sabendo, hiv/aids.” E outro: “Jogam-se búzios, põem-se cartas.” Anúncios, prenúncios, anúncios de prenúncios. Diriam estar fora dos eixos a vida desse rapaz. Mas é irônico. Por cima desta pista, segue pro trabalho todo santo dia. Por baixo – em dias nem tão santos –, segue para o perigo do qual é refém. Lá vai Venâncio, sob ou sobre. Vivendo, morrendo e entoando: à merda, civilização.