quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O Hímen de Pompéia

Pompéia era uma velha virgem da 416 sul. Oitenta e oito anos e o cabaço lá, soberano. Elsa, a irmã mais velha, chegou a dar: uma vez só, em 1952, para o moço que recolhia garrafas em sua rua. As duas, que moraram juntas a vida inteira, vieram não sei da onde de Minas Gerais e se enfiaram naquele apartamento escuro que era o 101. Havia, na porta dessa residência, uma águia cor de cobre — como a do Terceiro Reich — com uma argola dependurada no bico. Esse curioso ornamento substituía a campainha. Era só triscar no tal enfeite que a porta se abria: Dona Elsa espiava pelo olho mágico ao menor sinal de movimento no hall... Velha noiada aquela uma.

Elsa era a que mandava. Bastava um cisco fora do lugar e pronto, a rabugenta diminuindo a irmã, chamando-a por nomes. Pompéia tinha sempre uma perna enfaixada, um braço preso a uma tala ou coisa parecida. “É a osteoporose, o cálcio vai raleando”, comentavam os vizinhos. Osteoporose uma porra. Enfiava a porrada na caçula, a bruxa. Pergunta: o hímen de uma senhora de idade, com o passar das décadas, vai ficando mais frágil ou mais rijo? Tornar-se quebradiço por desilusão ou teimoso por efeito da inércia? São pensamentos obscuros que tenho...

Certa vez Pompéia ficou presa no elevador. Era uma máquina antiga, um daqueles Schindlers de porta pantográfica. Por ter molhado a saia, a pobrezinha se acanhou e não gritou por ajuda. Três horas depois, tiraram a senhora do calabouço, bem melhor do que se supunha: a cara empapada de suor, na mão uma garrafa de Baré vazia. Haveria um sorriso revanchista por debaixo de todo aquele cansaço? E se, na perspectiva da morte, a velha Pompéia resolveu ceder à tentação de um prazer derradeiro e despertou o Vesúvio a tanto adormecido?

Elsa era enfermeira; para Pompéia sobrou enfermidade. Elsa conheceu o garrafeiro; Pompéia, quando muito, se acalentou com uma garrafa... Entretanto, é aí que está a jocosidade insurgente que tanto custou: Elsa gozou do poder; Pompéia, do poder de gozar.

E mesmo assim, até hoje, o Niemeyer insiste em não decorar as paredes da catedral com afrescos pornográficos... Oh, meu Deus, por que as putas sabem rezar? Por que é que não tem Baré aqui na minha padaria?

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Easy, baby.

Olha, neném
Eu te amo

Amo

A sua luta
O seu pileque
O seu jeito de contar anedotas

Porra, eu amo o cocô do seu cachorro

É o teu cabelo, o teu balanço
Teu cheiro de avelã

E o seu cu enorme, lar de tantos demônios

Eu te quero, Bárbara
Com todos os delírios e neuroses da sua meia idade
Com o seu filho pré-adolecente, com a sua tia que tem bafo

Rainha
Única
Primeira
Última

Eu te juro
Eu te explico
Eu te peço

É só isso que eu te peço, Bárbara
Por favor:

Solta essa faca, meu amor.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Solange

Ó pra lá, Santos. A sapeca da meia-noite chacinando meio mundo cum sorrisinho de canto. Ali, ou. Tá que me olha com o rabo, chamando a catástrofe pra morar dentro dela. Posso não, Deus. Tem como um desatino desses? Naquele copo não é uísque: tem baba de touro, tem sêmen de lobo. As cabeças todas feito um cardume, pra lá e pra cá seguindo o quadril dela. Faço o quê? Ave... Queria era morrer.

Debaixo do vestido tem uma arapuca quente, Santos. Ali você sabe, é um labirinto sem volta. Já pensou? Eu vou é escrever uma ópera pro umbigo dela, Santos. E vai ser em húngaro, que é a língua do Diabo. Se eu for e ela me der sumiço, dá um jeito de arrumar ajuda. Não, faz assim: chama o vigário e manda rezar o que tiver de rezar.

E pior que não é só maldade, Santos. Essa menina é toda jeito, costura gota em flor. Viu ela mandando o outro um embora? Não careceu nem de ficar bravo: o não dela é de seda. Se eu for, aposto que ela diz sim. Ela piscou, homem de Deus. Pode até ter sido um cisco da purpurina, mas ela... Purpurina não sai do pau, Santos, gruda que é um horror. Eu vou, olha que eu vou. Porra, Santos, ela vai entrar no carro do... Diacho! Foi.

Tem problema não. Semana que vem eu volto aqui no baile. Nem que seja pra gastar o ordenado todinho. Tão linda, Santos... E eu nem ligo dela ser homem.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Mais, ainda

Um homem numa cadeira de plástico
Fuma cigarros, porém só até a metade.
Quem inventou isso de conhaque no vermute?
Estava de fato aposentado. Mundo:
Não lhe contava mais segredo algum.

Vez ou outra se tocava do quão insosso é persistir
Mas ele não podia fazer nenhuma besteira, não por enquanto.
"Antes disso", ele pensava:
“Preciso dormir com mais duas mulheres.”
“Ou três.”

Não se sabe ao certo o nome do homem.
Que tal Paulo?
Num desses domingos ordinários, percebeu
S u b i t a m e n t e
Que não amava mais sua esposa.
Ao revelar a descoberta para Lourdes (em tempo real)
Cometeu um erro.
Um erro gravíssimo.

Paulo sozinho: pouco mais que noventa e seis quilos
Todos eles prostrados numa cadeira
Uma cadeira amarela, de plástico.

Mesmo jogados, pisados no chão
Os cigarros pela metade não podem ser chamados de guimbas:
Aquilo que não é bituca possui ainda um préstimo.

Cigarros pela metade formam um rastro
Bem menos angustiante, é verdade.
No sentido de que os filtros,
(infumáveis)
Sucumbem numa canção de finitude avassaladora.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Cabeça

Pensamento: “Minha barriga é grande. O mundo é pequeno. Meu pau é pequeno. Aposentadoria. Qual é mesmo o nome daquele poeta? Pressão alta. Sal. Salve-me. Vida de merda. Alemanha. Odeio Kaiser. Alfabeto, Al-Jazeera, alcoolismo. Papai. Pipa. Pica. Formiga. Ou então cupim. Zangão, violão, televisão. Aposentadoria. Um incêndio no Louvre seria maravilhoso. Capataz. A virgem de Guadalupe. Homens na lua. Homens de marte. Verde. Dólar. Esqueci do aluguel. Pílulas. Jim Morrison. Cemitério. Morte. Sexo. Caveirinhas mexicanas. Aposentadoria e morte. Caveirinhas fazendo Sexo. Tequila. Aquela menina de dezesseis anos da bundinha arrebitada. Virgindade. Pedofilia. Cadeia. Ânus. Dezesseis anos. Meu pau não é tão pequeno assim. Outra Kaiser. A Monalisa era homem.”

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Combustão Interna

Árvores são cortadas por operários
Fabrica-se o papel
Nele, as mãos de Lúcio Costa traçam duas linhas formando uma cruz

Árvores são derrubadas pelos Tratores da Novacap
Fabricam-se os eixos
Por eles um burocrata traça seu automóvel após o expediente

A filha de um operário faz o sinal da cruz
Esse papel, dizem, foi o primeiro a ser fabricado
Ela está sob as árvores, exibe suas linhas

O burocrata, feito trator, deposita suas sementes
Fora dos eixos, apesar de tanta fabricação
Expediente? 50 homens em 5 dias, JK.

Oh meu Deus: terá a Volkswagen algum tipo de influência sobre o mapa da minha libido?

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Ana Bolha e Zé Cotoco

O pedaço graúdo fica no meio: “Aqui, não careço de caprichar”, foram essas as palavras do Pai, sincero ante o próprio agastamento. E, num faz-que-repete, deu cabo da massa, dum povinho parecido. Se assim não fosse, no bucho não pesaria o tal do mundo, e aligeirado far-se-iam os tempos, dado que bosta sem liga não tarda a sair.

Já nas duas pontas, a conversa foi outra: “Ali, me apetece uma tribo de agraciados.” E assim vieram, o buraco do cu voltado pra lua, mas nem por isso menos dispostos à iniquidade. “Acolá, um naco de mofineza, que só mesmo a desdita pro caldo vingar.” E voilà: a peleja é travada, o tempero é puxado, e de nada adianta culpar o Cão.

Assim como todas as fortunas podem passar pelos que estão a sós, nada impede a degustação da lama a dois. Eis a face complexa do arranjo, a parte volátil de todos os ditames: o que é o amor, senão um deboche? Ora, não há desventura que não se suste em virtude duma benquerença, pois sendo forte o grilhão, é fatível sorrir de volta pra quimera que for.

Consentir com o fosso não foi à moda de parto, mas trivial até. Em coma afetuoso, um com outro e o outro com um, Zé e Ana plantavam flor no vaso de qualquer calamidade. E não se trata de superação, que as mazelas muitas não cessam o doer. É o absoluto, o máximo d’alma: carne que desaprendeu o tosco, gozo raro se espraiando no lodo e não deixando restar um pingo a não ser boniteza.

Ana já veio grossa, toucinho em tudo quanto era parte. A mãe morreu ao dar à luz, e o pai, sangue no olho que ave-maria, não fatigava dizer: “Nenê o capeta, uma jaca! Sugou foi a vida da mãe, esse estrupício...” Demorou a menina pra se aguentar de pé, também pudera. Antes rolava, por vontade sua ou maldade alheia. E de seu tempo de boneca, não guardou estória boa, que é cruel o animal criança...

Zé foi o oitavo de doze, sendo o sobejo da cria ele mais outras três. É assim quando o sertão tá brabo, os infantes sempre na esquiva da foice. Mal fez sete e o rumaram pro cisal. Pingou de labuta por três secas até que a máquina comeu seu bracinho. Ô, povaréu de meninice penosa. Cansou-se da farinha, o Zé. Dando pouco pra roça, arredou o pé da Bahia e caiu pra cidade do Santo Paulo. Preto e dum braço só, Zé ainda me inventa de criar feição pela cachaça, prato cheio na mesa do patronato mesquinho. Refusavam tudo quanto era batente... Ê, Zé!

Olha que nem comer muito ela comia, era gorda de sina mesmo. Quando pensava em se enamorar, um quente de medo tomava o corpo: vergonha do azedume que tinha nas dobras. E o Zé, acometido de paranoia? Com o rabo da vista, ele tentava tirar a prova: desconfiava que estivessem encarando o seu cotoco. A dieta dos sucos quase a matou, foi Deus quem a quis bolha. Ana quer morrer, mas tem medo outra vez: vergonha só de pensar na alça do caixão quebrando. E o Zé, que deu pra queimar pedra? Magro, magro... E banguela. Se tapume de barraco valesse, ele vendia. Não se apoquentaria com essa de morada, dormitava era na boca mesmo.

Daí que se desacerta do caminho um cupido, batendo num bar-casebre desses do Capão Redondo. E da-lhe seta nos dois! Ana, que encara Zé, largou de ter dó de si. Zé vem vindo na piscadela, e o cotoco acalma, some a dor fantasma que o assombrava fazia é década. Ela na rabada, ele na malvada: num salto, boi e pinga numa boca que eram duas. Ou em duas que agora era uma.


“Zé, eu te amo tanto!”
“Tesão rosa! Leitoa cheia de prumo!”
“Você não liga deu ser gorda?”
“Eu te quero assim, sobrando.”
“Zé...”
“Que é?”
“Me come com o seu cotoco?”


Anos depois, o tempo veio cobrar o que lhe era devido, e Zé, de carcaça tão pouca, não deu conta da mão bruta do câncer. Ana, em amargura, abraçou os doces: tanto motejo nessa vida... Veio então a diabetes, que tomou parte de sua perna. Ana tinha agora um cotoco para uso próprio. E uma dor de dois fantasmas.

Antes, era a lembrança do amor que doía como um pedaço arrancado; Depois, foi a porção amputada que passou a trazer recordações da paixão. Aos poucos, Ana sucumbiu. No enterro, pouca gente. E a alça do caixão lá, firme e forte.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Carrão

Made en Trequadra 2

Dos velocípedes, o melhor. No estilo fórmula um: aerofólio, vários adesivos da Marlboro, perfeito para cavalos de pau sobre o assoalho encerado do bloco. Sim, primo egoísta é como câncer: toda família tem um caso. Por que tinha de ser logo ele o dono do “carrão”? Foda. “Não te empresto, vem pegar”, e, em plena fuga, o zura me atropela um pombo. O pobre animal enroscado no eixo, se esvaindo em penas e grunhidos inidentificáveis. Tocar no pássaro? Nunca! Rodar o pedal só piorou. Consternado, Gagau em berros: “Chama o Tiago!” E nosso primo mais velho, a par da situação, me desce as escadas empunhando um taco de bete: “Cadê? Vamos acabar logo com isso...”

Não me foi permitido assistir à eutanásia. Tiagão alegou ter enterrado a carcaça do bicho no areal da dezesseis – um desses imensos quadrados sem parquinho, sem trave de futebol ou rede de vôlei, sem significado algum. Dia vai, dia vem, e, numa dessas ocasiões insólitas que só a infância guarda, me deparo com o tal pombo nos arredores de sua cova. A ave ali: fantasmagoria a zanzar pelo super-cinzeiro-de-shopping. Sinal da cruz e pernas pra quem te quero. Duas ou três semanas de pesadelo e foi-se. Passou.

Meu primo mais novo, o mesmo do “carrão”, tinha um hamster. Pé de Pano era o nome. Daí o acidente: esmaguei o coitado com uma nave, um cacete espacial de Playmobil. O medo das consequências me levou de encontro a várias medidas insensatas, sendo uma delas a de enterrar o roedor ao lado do pombo. Aquela areia era estranha, vai que o diabo do rato também voltava... Não voltou. Castigo? Já que o homicídio não havia sido classificado como doloso, achei que iria escapar, mas peguei sete dias. Muito provavelmente devido à via de reparação que escolhi, insensível segundo o julgar de alguns: “Eu compro outro com a minha mesada, prometo.” Ora, o hamster, pelo menos para mim, deveria ser tratado como um animal de valor afetivo menor. Alguém aí já viu hamster em clínica veterinária? Não! É assim: rato a gente deixa morrer e pronto. Até comemora, dependendo do rato...

Anos depois, grandes revelações: meu primo mais velho confessou que havia jogado os restos mortais do pombo na lixeira do prédio, e que o rito ornitofúnebre não passara de um inverossímil adorno de caso. Hoje em dia, quando vislumbro aqueles ermos de areia, várias coisas me vêm à cabeça. Penso que os pombos são todos muito parecidos. E que os pássaros, por motivos óbvios, me fazem lembrar mais do Stephen King do que do Hitchcock. Penso também em cavar um buraco, em encontrar ali a ossada do rato, ou pelo menos um resquício de outrora, uma alegriazinha qualquer que seja.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Azeitona de Cachorro

Made en Trequadra 1

Quando eu era pequeno, trabalhava na casa de minha avó uma moça que atendia pela alcunha de “Lu”. Pois bem. Certa vez, enquanto fazíamos o caminho de volta da padaria, me indaguei sobre a composição daquele misterioso tapete púrpuro que se estendia por vastas porções de cimento. Tudo em vão, pois eis que não tive sequer meio segundo para examinar a curiosa frutinha. Lascou-me um tapa violentíssimo nas mãos, a babá. Em seguida, o alerta: “Larga isso, menino, que é veneno!”

Hoje em dia, de face aos trancos da vida, por vezes penso em correr nu por esses bosques planejados do Plano Piloto... Em busca de tantos quantos forem os jamelões que possam caber em minha boca.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Divã-a-cabo-u

Certa vez, no consultório:

" – Eu, por muito prezar o título de filho dileto, decidi por deixar crescer o câncer aqui plantado. Boa jardineira, a mamãe, muito embora sua noção paisagística se sobreponha ao sofrimento de uns e outros..."

" – Entendo. Se o problema é falta de sinal, digite um. E tudo bem se você não tem certeza. Se você está ligando para tratar de uma visita técnica, digite dois. Para qualquer outro assunto, digite três."

É... Integrar um mercado oligopolista tem lá suas vantagens. O Dr. Noronha Estevão de Travassos que o diga: cobra caro, não resolve, não tem medo do PROCON.

sábado, 5 de junho de 2010

Soneto Interativo da Patologia Fofa

(Preencha as lacunas abaixo)


Doença que não finda
Na cabeça a tempestade
Que coisa mais linda
Sem dó nem piedade

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Dininha
Tu sem calcinha
De pé, pronta pro ato

E eu por trás
Por ti capaz
Inté de assassinato

sábado, 22 de maio de 2010

Puta Velha

– Ô, nhá Maria...
– É o quê?
– Seu filho aqui em baixo.
– Sem graça!
– É, ué. Rapaz moço, o cabelo um sebo só. Diz ser seu filho.
– É filho não, trem. É cliente. Negócio de mãe é tara.
– Cada uma!
– Tem jeito? Mania de mãe, porra...

terça-feira, 18 de maio de 2010

Rodrigueana

Nosso Homem

Francisco não era lá nenhum santo. Contudo, exagerado seria se elegêssemos, entre os traços de seu caráter, sítio destacado para a infidelidade. Suas escapadelas ligavam-se diretamente ao enfado conjugal, à perene agonia do arroz com feijão. Das aventuras, nosso bom homem tirava o ânimo para a reparação, prática que, diante das almas verdadeiramente compreensivas, lhe rendia a fama de esposo devoto. É possível detectar no adultério, sim, uma espécie de zelo oculto. Mas as minúcias se fazem necessárias, do contrário tudo não passaria da mais cínica das justificativas...

– Se não é o contador mais alinhado do estado da Guanabara! Um pão!
– Dona Carla...
– Sua loção pós-barba, Chiquinho... Bole comigo de um jeito, sabe? Tu em Botafogo... E eu sinto da Urca!

Francisco desconversou, foi forte. Problemas em casa ele tinha, claro. Mas não se pode abdicar dos freios, ora pipocas! Menos por culpa do que por ordem. Grita-lhe nos ouvidos a patroa e já brota nele a idéia da amante? Um desgosto aqui, outro acolá, e já toma nosso homem o rumo do motel? Os estratagemas aparentemente escusos da boa administração matrimonial não devem ser movidos pela fraqueza da carne. “Pouca vergonha? Nunca!”, bradava Chico. Amélia era beata, não merecia judiação. Se Francisco se deitava com outra, pode anotar: era para salvar a pátria, caso de vida ou morte.


Caso de Vida ou Morte

Começou com uma pequena implicância, mas logo tomou dimensões preocupantes: Amélia passou a não tolerar a sinuca de sexta-feira.

– Pois eu lhe digo que ali não é lugar de respeito! Na semana passada, eu tive de explicar à Laurinha: “Ás sextas não costumo passear, Francisco chega cansado da repartição. Não gosta de acumular serviço para a semana seguinte, entende?”
– Amélia, meu benzinho...
– E eu me perguntando se a Laurinha não sabe da verdade, que meu marido não me leva ao cinema porque prefere freqüentar um antro de biscateiros, de boemia, de jogo... De jogo, Francisco Amaral! Eu não admito...
– Não é jogo, Amélia, é sinuca... Não tem aposta, não tem nada. Todo homem precisa de um tempo, de um...
– Tempo? Foi isso que o Augusto pediu pra Roberta! E o tempo virou “desquite”... E você sabe que eu prefiro tomar...
– Eu sei, eu sei. Prefere tomar um copo de veneno a se desquitar. E que em caso de adultério...
– VE-NE-NO-DE-RA-TÔ!

Deu sexta-feira e Francisco não foi à sinuca, mas ao municipal. Carmen, quinta fileira, bem no meio: os ingressos lhe custaram os olhos da cara. Amélia só pensava em conhecer a Espanha, a imaginação divagando nas touradas... E a cabeça do marido na sinuca, na cerveja, na amante. Qual seria daquela vez não importava. Para suportar as sextas vindouras, era preciso que Francisco deixasse claro para si: “Não sou um pau-mandado!” E essa mesma direção tomou seu sábado.

Alegando estar indo para uma partida de futebol, Chico rumou para o bar do Joaquim, no catete. Graças à amizade que tinha o portuga para com Chico, não houve custos ou coisa do gênero, tudo acertado na maior camaradagem. O espaço fora reservado quatro dias antes. No segundo andar, esparramada sobre a mesa de sinuca e trajando nada mais do que a própria pele, estava Betina, “A malvada do Jóquei”. Antes de partir, enquanto abotoava as calças, proferiu nosso homem em alto em bom som:

– Olha aqui, você não me inventa de fazer besteira, de me procurar ou coisa parecida... Eu sou casado! E tem mais: eu só traio porque amo, ouviu bem? Porque amo!

O fetiche logrou êxito. Na sexta seguinte, Francisco fez questão: não por acaso assistiram à outra ópera, dessa vez foi “Turandot”. Amélia só pensava em conhecer a China, devaneios se perdendo em vastos reinos. E a fantasia do marido pairando sobre o leito doméstico, antevendo a hora da pergunta: “Quem é que manda aqui? Vamos, diga! Quem é? Hum? Quem?”


Ética

Ela o abordou no baile:

– E daí que não te conheço? Nutro por ti uma imensa admiração! Suas feições me são novas, mas os seus feitos... Sou amiga da Carla, ora!
– Carla?
– Parece que você faz o imposto do marido dela, o que mora na Urca...
– Ah, a mulher do milico?
– Um trouxa!

Por amor, de cerca nosso homem pulou um punhado ou outro. Morreu a tia avó de Patos de Minas; E lá se vão duas pra três semanas perdidas, o tal do luto enlouquecendo Francisco. Depois foi a irmã rica de Amélia que se hospedou no apartamento; E Francisco agüentando coice atrás de coice. “Se aqui nada presta, por que não fica ela no Copacabana Palace?” Tantas preocupações, tantas providências... Por que haveria ele de dar nome aos bois, às soluções? Antes o machismo à úlcera! Fátima, Beatriz, Angélica, Siboney... Melhor era não saber, bom mentiroso é aquele que se aliena da verdade. Afinal de contas, era isso ou o tal copo de veneno...

Acontece que naquela ocasião não havia problema algum, nada que o afligisse. Pelo contrário: sua cunhada levara Amélia para fazer compras no estrangeiro, o que para Chico significava gozar de uma liberdade ímpar. Mas a pequena insistia em o perseguir pelo salão, a tentação em pessoa cravando-lhe as unhas no braço: “Vamos! Que mal tem?” E Chico: “Não posso, não dá!”

O uísque pesando cada vez mais:

– Eu cuido de você direitinho!
– Eu tenho quem me cuide...
– Cuida? Largou-te aqui e foi para Europa...
– Mas ela foi com a irmã, pombas! Com a irmã eu não iria, aquela megera...
– Vem comigo, então...
– Sem motivou eu não dou conta, pode ser até que me falte o vigor...
– Impossível!

Pela primeira vez levou Francisco uma outra para casa. Mesmo sendo grande o pileque, Chico sabia estar incorrendo em grave erro. O peso na consciência crescia na medida em que Paula tecia e lançava seus comentários estapafúrdios:

– Me fale de sua esposa.
– Por favor, Paula...
– Ela está em Paris? É boa no que faz? Tem faro, desconfia de você?
– Agora não, carambolas! Mudemos de assunto, sim?
– De que lado da cama ela dorme? É ela nesse retrato?

Francisco deu um jeito na moça. Aliás, que jeito! Aliás, que moça que nada! Paula: “Mais, mais!” E Chico: “Temos a noite inteira!” E ela: “Não! Quero muito... Outros dias, outras vezes!” Ele: “Está maluca? Sou casado! Se Amélia toma conhecimento dessa pouca vergonha, é batata... Se suicida, a minha santinha.” Enquanto falava, Chico apertava com força a garganta de Paula, quase a estrangulando. Procurava sublinhar sua regra de ouro: “Uma vez e nada mais! Senão te dou um sumiço... Eu te mato!” E, naquele exato momento, Paula sorriu, esvaiu-se em um prazer absoluto.

No dia seguinte, pela hora do café, os vizinhos ouviram um pranto. O choro urrado vinha acompanhado por gritos:

“Eu não tenho éticaaaaaaaa! Um pingo de éticaaaaaaaaaaaaaa!”


Às avessas

Francisco, até então, não se esquecera de Paula. Segundo ele: “Minha única deslealdade!” E, quando a encontrou pela primeira vez após a tal noite, uma surpresa: a pequena seguiu à risca as recomendações que lhe foram feitas. Nem sequer uma espiadinha de canto de olho. O cumprimento foi apenas formal, mas para Chico aquilo soou como frieza. E nosso homem se arrependeu de ter sido tão enfático...

A verdade é que Francisco acabou por se transformar. As outras: “Meu marido foi pescar...” ou “Não me dou com os números, uma ajudinha viria bem a calhar...” E Chico, ao invés do bom e velho “Nem em sonho!”, “Isola!”, passou a soltar: “Assim você acaba comigo”, “Ai, meu Pai...”, “Lascou-se!”.

E então, numa tarde de sábado, a bomba: Francisco chega do futebol e encontra a casa de pernas pro ar, uma bagunça que só. Inicialmente, pensou estar diante da cena de um crime, mas logo percebeu que muitas coisas de valor não haviam sido levadas, e que tão pouco demonstrava a fechadura algum sinal de arrombamento. Em cima da mesa do escritório, um envelope pardo. E foi o conteúdo do mesmo que levou o nosso homem a nocaute, o fez beijar a lona: eram os papéis do divórcio.

Havia também, dentro do pacote maior, um outro envelope, menorzinho, de cor branca. Nele estava guardado, como fazem os forenses com suas provas, um fio de cabelo longo e loiro. Amélia, que tinha os pêlos grossos e negros, recebera do advogado da irmã toda a ajuda jurídica necessária. E só depois de duas semanas foi que Chico encontrou, junto aos entulhos dos trâmites legais, um telegrama:

“Eu sempre soube de tudo, de todas. Agüentava por amor. Mas na nossa cama? Não tenho sangue de barata. Adeus.”

Nem sombra de veneno houve na estória... Pelo contrário! Amélia se casou com um francês, podre-e-meio de rico. E foi o nosso homem, amargo e desiludido, quem atentou contra a própria vida: atirou-se, coitado, do alto da Rio-Niterói.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Yard Bird in Veins

Just a rotten carcass, a few walking scraps sniffing out for something to shoot up in. And he was not the only prophet seeking visions in the Manhattan’s swamp of needles: one thousand fleets, along with their illuminated crews, sunk in those poisonous mud seas.

A business man jumps out from the mist. “Peace for sale”, he said. Besides the effects in trembling hands, there is no better medicine for peptic ulcer pains, annoyed lungs, unpleasant thoughts…

The dream powder is a bit of desirable death. Pity we can’t put it exactly where we want. Oh, it’s done!

And there he was. Trickling down the streets, testing, after a couple pinpricks, how soft can be the sidewalk beneath his feet. Eyes half-shut, an almost audible melody springing out of his numbed throat, the black fingers moving in response…

Perhaps obscure places are cozy for some souls. Perhaps inspiration means nothing but a necessary alignment between two worlds so a bridge can be settled. Perhaps a genius is one that can easily turn himself inside out. And the mess can be contagious: brilliant minds always give us something like the taste of their disease…

That night on 52nd St. was memorable. Goddamned sweet trauma… I’m still searching for my guts. The holly ripper! Charlie Parker was his name.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Sob o céu da Juliano

Os levantes raramente atingiam tamanha proporção. Vez ou outra tinha início um quebra-quebra no refeitório, se ateava fogo num colchão e só. Mas aquele foi um badernaço dos grandes. Enfermeiro é bicho ruim, tem critério pra sarrafo não: romperam até o baço dum catatônico, pode? Quanta injeção, quanta gente gritando de choque na cabeça... Que horror.

Luiz conheceu Babi nesse dia. Mesmo impregnado, correu pela colônia, se embrenhou na trepadeira de flores azuis. Não tinha espinho ali que magoasse o homem. Luiz no meio da tormenta, contente feito pinto no lixo. Arrancou a roupa fora, comeu terra, riu da chuva. Um ziguezague sábio, devir completo. Daí o muro na frente dele: caiu Luiz no pátio das mulheres.

Ela ali, debaixo daquele temporal, encolhidinha num canto. A cabeça careca e bêbada, duplamente marcada pela brutalidade médica. Luiz faz carinho, diz que é pra ela não chorar, que um dia ela vai poder voar e tudo ficará bem. Luiz, bom de estória que é, contou do mundo. Ali não tinha espelho, batom, nada. Mas ela se sentiu bonita, o flerte do moço tão doce...

Luiz é “doente mental”, dizem. Ficou assim porque a filha morreu. Babi é subversiva, presa política. Agrado de pele começando e ela pensando se aquilo era certo. O corpo tem vida, ora. Mesmo afogado em Haloperidol. Por meio do gozo, uma aula de desvanecimento: a velha que morreu de sede na enfermaria, a matilha de lobos brancos a currar as internas... Lembranças que somem; pesadelo que pausa. Socos e pontapés pelos corredores. E lá fora, com direito a Santa Bárbara e São Jerônimo, um encontro invisível sob o céu da Juliano.

Parece que os terroristas assaltaram um banco importante, algumas mãos foram devidamente molhadas no hospital. Babi acabou “fugindo”. Outro que escapou depois foi Luiz, mas por conta própria. E não é que os dois se esbarraram na cidade? Babi bem melhor, abraçou o Luiz, chorou muito. Disse que ia voar em breve, igual ele tinha falado. “Nem México, nem Argélia... Vou pro Chile, pro Chile do Allende!”

Babi levou Luiz pra tomar banho na casinha da Rua Alice. Luiz disse que gostava muito de xampu, cama, fruta, de refrigerante e do mar. E que ele só ficava assim, sujo e aflito, quando cismava com uma coisa muito triste que havia acontecido. No chuveiro, Babi beijava o corpo de Luiz como se aquilo fizesse parte da limpeza, tentativa de lição acerca do direito de esquecer.

As torturas e as resistências não têm medida. Vai saber quem aguenta o quê e o tanto. Babi pensando se a nau dos loucos, com a vela que for, desembarca nalgum porto. E agora foi Luiz quem chorou. Fruta sem gosto, xampu sem cheiro... E tome soluço a tarde toda. Babi fumando na janela. Foi uma broxada muito honesta.

Atrocidade na moda pelas bandas do sul: deu setenta e quatro e Babi teve de sair fugida outra vez. Coitada. Rumando pra Europa ela mais o filho pequeno, os dois só com a roupa do corpo. Hoje é arquiteta e ainda manca daqueles tempos. Luiz morou na rua. Pneumonia, fome... Teve o seu punhado de morte em vida. Depois virou pescador, a cuca quase sã. Muito ainda chora pela filha. Cama, refrigerante, tudo se desfaz no desespero. Menos o mar. O mar nunca.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Trevisiana

Foi sem mais nem menos, seu moço... De repente, sabe? O sim ele já disse foi mais de três vezes. Casamento é salgado, quem não sabe disso? Inda mais o Zé, que teve tantas antes de mim... O homem saltava de barraco em barraco caçando quem não falasse da pinga dele. Largou cria nesse mundo, parece que quatro ou cinco. Coitada daquela outra uma. Lavando pra fora, os dedinhos surrados, já viu como fica? O punho também estraga. E o Zé descendo as pensões pela goela. Se falido, tomava fiado, secava até garrafa macumba. Eu, por benção do senhor, vim ao mundo com o bucho podre. Trazer alminha pra apanhar já desde cedo, jogar menino nesse mar de vara de marmelo? Deus que me livre.

O Zé me engabelava fazia tempo. Chegava em casa cheirando à pouca vergonha, só queria o de comer. “Não tem janta na casa dela? Feijão de meretriz é ralo?”, eu perguntava. Coitada de mim, as bochechas inchadas da mão do Zé. Feliz era o dia que a embriaguez pesava forte. Aí eu dava nele: bassoura, garfo de passar bife, vaso de flor... Tudo, tudo. Faltava um rolo de massa lá no meu cafofo, daqueles de filme... Você já viu um de verdade? Nem eu. Meu macarrão já vem feito no pacote.

Olha... Eu sempre dizia que o Zé não era uma pessoa ruim. Só quando aborrecido, né? Pois então. Sabia ser meigo, uma vez me comprou até um estampado. De loja, hein? Dirigiu ônibus, vendeu na feira, carregou tijolo. Trabalhando ele ficava manso, via novela mais eu. Bem sabia do agrado que deixa a mulher feliz. Segurar um tempo bom no batente é que era difícil. O capeta falava no ouvido dele, carregava o homem pro bar. Daí tome cachaça, tome despesa, tome corte no olho... Um vizinho meu teve dó, veio oferecer ajuda. Azevedo era o nome. Falava calmo, sempre de terninho, o livro preto debaixo do sovaco. Precisa mais? Não é que o Zé me vira crente!

No começo foi um alívio. O Zé parou quieto, passou a botar comida na mesa. A madame enxergou no meu rosto, notou que algo me tinha acontecido: o serviço rendeu! Até promessa de aumento eu escutei. Só que tudo que sobe... Desce! É ou não é? Eu não agüentava mais cantoria na igreja, ouvir falar disso e daquilo outro, ter que usar tal e tal roupa, não ir pra ali nem pra acolá. Amor era só no escuro. E como é que faz igual no livro se a mulher não pode dar fruto? Maria Santíssima, o José deu pra pirar a cabeça...

Esse povo oito e oitenta, conhece? Zé que nem um furacão. Cana eu não sei como não pegou. Fez uns biscates, mexeu com bicho, com roubo, com tudo. A lata sempre cheia, Doutor. “Um dia inda morro desse Zé”, pensei. Daí aconteceu, seu Peçanha... O Zé tava raivoso, escumando feito cão. Quem me conhece sabe dessa carcaça aqui, ó, toda roxa de safanão. E já tava o livro em cima da cama outra vez. Maldição. Eu não dava mais conta, a estória ia começar de novo. Me resolvi: peguei a navalha reservada às inimizades dele... Feitorzinho de costas pra mim, metendo a gravata pra se fazer de santo. Cortei o Zé, Delegado. Feito fiambre. Sou adivinha? Sabia eu que homem morre fácil assim? Desgracido...

quarta-feira, 10 de março de 2010

космонавт

Heróis de guerra. Exímios nadadores, ótimos ginastas... Sem falar, é claro, nos cosmonautas.

E aquelas canções? Ah, o acordeão!

Não nos esqueçamos da máfia, do borscht, dos Vladimires, da vodka, das ogivas, dos gulags, do Niva...

Se eu fosse russo, manejaria bem o meu rifle...
Fumaria um cigarro no frio.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Cães e Canções

Acerca do Ermo (Preâmbulo)

Era passando por Dourados, no rumo de Ponta Porã. O acesso ficava à direita, logo após o primeiro posto. A estrada de terra seguia paralela por algum tempo à BR-463, quebrava sítio adentro, e tornava a desembocar na pista outra vez. Não podia soltar o pé, o chão era feito costela de cabrita magra. Tomavam aquela vereda os que queriam aliviar a vida de tanta bronquice. A mais sublime das espeluncas, acreditem, ficava plantada em um dado ponto desse descaminho de poeira e pedra. Lá, sob os lampiões envoltos em celofane vermelho e ao som vagabundo de uma mesa de dois canais, se apresentava ninguém menos que a diva guarani. Centro-oeste: oceano decrépito de plantações de soja e cabarés de quinta. Nessa região, daqui para mil anos, nada de novo há de surgir. Muito menos algo que se compare em beleza ao velho número de Rodolfo no “Estrela Dalva”.

Caminhoneiros, índios, frentistas, sacoleiros, trabalhadores sem terra, ciganos, boiadeiros, capatazes, alcoólatras, pequenos comerciantes, jogadores... Gente de bem e toda sorte de moribundos. Um puteiro, correto? Inácia, a dona do buraco, sabia o quão imune às duplas sertanejas são os homens verdadeiramente duros. Não dá para chorar as mazelas da vida fazendo sempre uso daqueles que glorificam a cornice, dos que seguem fingindo que o cu do Brasil se parece com o Texas. Por esse motivo, gozava de muitas regalias a musa café. Possuía um quarto próprio, era poupada dos gritos da proxeneta, escolhia os clientes. Kerexu Munõz, “La Reina del Pedro Juan Caballero”, ou, pelas bandas de cá, apenas Rodolfo. O ás do Dalva lotava a casa com sua voz ambígua de dor e consolo, umedecia hordas de pupilas xucras.


O Primeiro Homem

Aquele não era exatamente um espelho redondo com luzes na moldura. Sendo assim, o conjunto aspirante a penteadeira ostentava um glamour de tipo muito próprio. Plumas, brincos, anéis, inúmeros colares – uma conta para cada vez que teve vontade de morrer. No canto, um recorte desbotado com a foto de Ney Matogrosso. Nem sombra de cigarrilhas importadas no cinzeiro, apenas os restos de Calvert manchados de batom. Rodolfo estava prestes a entrar no palco, fazia seus últimos retoques. Quem se pinta para ganhar a vida sabe o tanto de digressão que cabe em cada etapa do processo. Infrutíferos são os dizeres que ousam se aproximar do mistério da maquiagem... Ela sentiu o vulto com a nuca:

– Ai, que susto! Seu demônio, coisa ruim... Quer me matar do coração?
– Rata velha! É tu que mata os outros – o homem com as mãos nos bolsos, sorrisinho de patife miserável.
– Vai entrando assim no meu camarim, sem bater nem nada... É doido, é?
– Camarim? Achei que aqui era o seu quarto.
– Essa parte do meu quarto é o meu camarim. Cretino.

O homem bulindo nos bibelôs. Uma inquietude enxerida enfeitada por gestos secos e rudes se fazia mais do que presente, não o deixava parar por nada.

– Me diz uma coisa... Rodolfo? Que estória é essa agora? Isso não é nome artístico...
– O nome sou eu que escolho. Eu sou a estrela dessa merda – o trago foi raivoso, veio com um pouco de filtro e provocou careta.
– Devia então era se chamar Dalva! Rodolfo não dá, é feio. Tem que arrumar um nome que case bem com você... Aliás, Kerexu, você não é toda índia, é?
– Não. Aqui corre sangue europeu, ó. Meu avô era um negociante rico, fazia parte nobreza.
– Nobre? No máximo um corsário fingido de espanhol, devasso mouro que entrou no mato e catou a sua avó no nó.
– Que seja. Cadê? Você trouxe?
– Essa raspa de parede ainda vai te custar caro...
– Anda, passa pra cá que já chegou minha hora.

Rodolfo dosou com a unha o salpico de nariz. Apressada, rolou escada abaixo e foi correndo encantar serpentes.


O Segundo Homem

– Alou? Com licença... Pode entrar? – o homem tímido segurava sem jeito o boné da Ivomec.
– Pode, meu bem. Sem acanhamento. Sente aqui do meu lado e me ajude com essas fivelas.

Os interessados passavam pela avaliação minuciosa de Inácia. A grande maioria era encaminhada às outras meninas da casa, apenas uns poucos obtinham permissão para subir e conversar com Rodolfo. Naquela ocasião, o homem mal entrara no quarto e já havia obtido a aprovação imediata da musa. Mesmo o piso do aposento não estando dos mais limpos, o homem se preocupou com o barro de suas botas. Aprovadíssimo. Por vezes Rodolfo inspirava cuidado nas pessoas. E esse era um critério decisivo.

Rodolfo não tinha seios. Apesar de seu corpo ser longilíneo e suave, ficavam evidentes alguns traços masculinos. O homem se espantou ao despir Kerexu: o sexo era exatamente como o das outras mulheres. Assim como as melhores transas, aquele corpo permaneceu para sempre enigmático.

– Você acha ruim se eu ficar mais um pouco?
– Olha o potrinho carente... Você gosta de coceira nas costas?
– Gosto.


O Último Homem

Ela ouviu o barulho, achou normal. Alguns marmanjos gostam de cair uns sobre os outros, se arranham em infindáveis medições de pau. O que chamou sua atenção foi a mudança repentina, um tipo qualquer de silêncio póstumo. Os toques à porta soaram sarcásticos, a madeira transmitia a intenção perversa. Foi o tempo de Rodolfo alcançar a arma na cômoda.

– Solta esse brinquedo – o homem com sangue na roupa, sereno até.

Veterana, a índia conhecia bem o resultado dos dados. Fazer o quê? Fugir? Dá um tempo. Onde é que se arruma força pra botar banca de esperta numa hora dessas? Rodolfo estava cansado. De ir e de ficar. Uma canseira absoluta, não tinha jeito. O show era só um galho que escapava à lama... Foda-se.

– Fez bem, índia. Olha só essa peça! Beretta prateada do cabo perolado: bem a cara de uma puta paraguaia. Calibre 635. Além de feia, costuma enguiçar – o homem expeliu um cuspo enquanto contemplava a arma –, não vale cinco mangos. Vou testar ela em você. Se falhar, te deixo seguir viagem.
– É um canil, não é?
– O quê?
– O mundo... O mundo é um canil.
– Não sei. Mas eu vou pensar nisso, índia. Vou pensar.


Acerca do Ermo (Posfácio/Epitáfio)

Do Dalva não sobrou muito. Uma ruína no pasto, pilha de restos outrora musicados. Alguém aí acredita na memória das coisas? Quem quiser pode ir lá estudar os ossos.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Pão com Sapólio

Cida é um doce, faz de tudo um pouco. Se acha graça, tampa com a mão, já viu? É que nela faltam peças pro riso. A irmã, quando quinze ou um pouco mais, cariou os dois da frente. O pai mandou arrancar logo tudo e botar dentadura. Imagine o moço prensando a cabecinha da menina na parede... Tenha dó. Cida viu aquilo, não esquece por nada. “Sai pra lá com o homem do alicate, cruz credo.”

Cida tem muita coisa boa. A gente não dá só o que é velho não, viu? O quarto dela tem uma basculante grande, entra bastante ar. Na mesa ela não se senta, diz que é porque não sabe comer com a forquilha. Ou não gosta. Forquilha é garfo. Engraçado, né? Cida, Cida. Sabe onde tá tudo nessa casa. Não fosse ela...

Adivinha de quem é o melhor cafuné do mundo? Da Cida, ué. Era assim que ela ensinava sobre a coisa da malcriação: não fez lição, não banhou na hora? Então não tem cata piolho! Cida tem sessenta e seis anos, é quase minha avó. É tanto mimo... Menina do céu! Uma vez eu perguntei se eu podia ficar no lugar da neta dela, uma que mora em Simões. Desabou no choro. Ai, minha vovó Cida...

Esse negócio de carteira assinada minha mãe já explicou pra ela. É pior. No domingo não pode pedir muita coisa, que é pra ela por os pés no alto, ver se desincha. E o solado? Sequinho, sequinho. Cida diz que reza pra todo mundo aqui de casa.

Olha esse feijão, que coisa do outro mundo! Mas é estranho. Vou te falar baixinho, ó. Às vezes eu tenho medo, fico pensando: e se ela botar aqui... É... Um pouco de veneno, sabe?

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

SOS suruba

Outro dia acabei caindo numa destas putarias universitárias. Três homens e duas mulheres. Samba vai, samba vem... Um cu me olhando fixo. Estando o mesmo asseado, não me pareceu má a idéia de chupá-lo. Daí o sujeito se vira indignado, me joga um papo sem noção - gritou que era homem, etc. “Homem é o caralho”, eu disse pra ele. “Tu é um viadinho, mermão.”

Bacanal Clean: reparem bem na igreja que esse pessoal foi inventar de rezar agora...

Figurada

Longe do patrão querer bancar o empregador cruel. Esse jogo requer um tipo específico de inteligência. Entretanto, o autoritarismo é uma propriedade sutil cujo estado latente pesa pouco na consciência...

A menina, embora muito nova, já havia aprendido com os pais o valor nutricional da obediência. Faltava ainda a lição acerca dos aborrimentos. Entrou no casarão e disparou a perguntar: “Por que acontece isso? E aquilo outro?” O patrão ordenou que a menina fosse caçar gelo pra enxugar.

A filha do caseiro segurando um pano de prato úmido e uma pedra já quase derretida por inteira:

“Assim está bom, doutor Marcos?”

O médico ex-comunista; A inocência da pequena; A vida em sua dimensão literal.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O Detritívoro

Não se tratava de um trabalho desgastante por natureza, mas Frederico, minucioso como nem sei, acabava por sentir o peso do labor em suas costas. Pouco se importava. Em clara oposição aos seus contratantes, muito sabia ele a respeito das sutilezas, das mil técnicas envolvidas no processo. Não sendo dotados os leigos dos devidos critérios de apreciação, era na feição da própria “mercadoria” que esse rapaz buscava o reconhecimento pelo serviço bem feito. Sim, mercadoria entre aspas, vá lá.

Sonhava em conhecer atrizes, o menino Quico. Ou mesmo em ser uma estrela dos bastidores da moda... Acontece que a vida real é uma pedrada no supercílio. De qualquer maneira, Frederico seguia feliz. Bastava um pincel e algumas cores para o tal milagre... Que sensibilidade! Sua crescente auto-estima transformou aquilo que era um garoto franzino, enleado, em um profissional que sabia se impor – ainda que nem sempre de maneira muito profissional. Passou a trabalhar em uma empresa de grande renome na praça, tornou-se um galanteador. Quando faziam troça de sua opção sexual, Frederico respondia classudo, sempre com um sorriso no canto da boca: “Sou onívoro, bem.”

***

– Como vocês podem perceber, há uma aura de quietude, vejam – o agente passando as costas da mão no rosto do finado.
– Sim, a mais pura serenidade. Aliás, eu arriscaria dizer que, pelo semblante, foi uma passagem amena – a secretária olhando para os presentes, caçando de alguma forma a aprovação de seu comentário.
– Câncer. Ele sentiu muita dor – a viúva assuando no lenço negro.
– É, mamãe, mas ele está com uma cara ótima...
– Verdade – o agente um pouco aliviado –, essa é a marca de Quico. A felicidade do falecido: trata-se da assinatura desse grande artista, não é à toa o nome de nossa empresa.
– Quero congratular esse homem pessoalmente, faço questão – ponderou a viúva rica, agora com as lágrimas secas e os soluços em digestão.

Os cinco que ali estavam seguiram para a sala de maquiagem – fazia também parte do grupo um guri que, com seu pirulito espiral multicolor, parecia não entender ou não ligar para a funebridade da situação. “Ué, trancada?” Após uma segunda investida, Marlene, a secretária, acabou por tropeçar sala adentro com porta e tudo. Num movimento rápido, porém não menos desastrado, tentou disfarçar o indisfarçável. Seu corpo bloqueava a entrada a todo e qualquer custo. A intermitência de sua voz confirmava a modalidade cretina de sua intervenção:

– Este é um... Um procedimento raro... Última tecnologia... Importada, nova, única... No que diz respeito ao... É... Ai, meu bom Deus...

Tarde. A cena não fora das mais amenas. Nem o guri se manteve alheio: o pirulito caiu no chão, partiu-se em pedaços. A visão de um cadáver nu se faz compreensível, obviamente, tendo em vista os procedimentos de qualquer funerária. Mas o que dizer de um anatomista em igual condição? Isto é, igual se desconsiderarmos o fato do rigor manifestado em uma dada região de Frederico não ser exatamente do tipo mortis... Que coisa.

***

Na delegacia, o propietário da “Final Feliz” balburdiava seus últimos sermões ao agora ex-empregado:

– Já fiz o que podia por você, Frederico. Imagina se isso sai nos jornais... Seria o fim! Eu te adiantava salário, assinava sua carteira, tudo bonitinho... E você me apronta uma dessas!
– Eu não fiz por mal... Ossos do ofício, sabe?
– Como é, rapaz?!
– Ora, seu Agenor, não se faça de desentendido. E os sorrisos? Da onde o senhor acha que vinham os sorrisos?

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Luto

A mãe se enfeitou inteira e bebeu veneno. No outro dia, o sol brilhou normalmente. A filha, ao perceber tamanha indiferença, encheu-se de rancor: jurou – com os pés bem juntinhos – distribuir sua mágoa, em porções desiguais, para cada um que lhe mostrasse a cor dos dentes. E assim o fez. Ao longo de toda sua vida.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A troca

Mora sozinho em um apartamento pequeno. Mas é na Paulista, ora. Dinheiro, saúde, mãe, pai... E agora? Nandinho numa dessas suas aventuras. O porquê não existe. Pura boçalidade autômata. Como que para verificar: é de verdade, essa vida? Sai por aí, chuta latas, zanzando nessa cidade de coração duro que é São Paulo. Uma sarna ou outra pra ver se espanta o vazio, que mal tem?

O bom filho a casa torna, pródigo em relação à própria sorte. E a dona:
– Que bonito.
– É.

Tem quadro, sofá, tapete, televisor, geladeira, telefone: o olho da mulher brilhando. Como são lisas as paredes rebocadas. Ela viu um cobertor grosso na cama, sentiu ódio.
– A ducha fica ali – Nando teve de dizer. Fazer o quê?

Na segunda ele ia se encontrar com os amigos da faculdade. O bar: homens e seus relatos...
– Tira essa toalha e deita. De costas, viu? Por favor.
– Deita é o buraco do cu. Primeiro o prato que você me prometeu!

***

Engenheiro e dentista assistem, bem por alto, ao telejornal. Casa de praia em Florianópolis:
– Hein, amor... Viu isso? Levou a sem-teto pra casa, queria fazer sexo com ela... Um crime bárbaro. Parece que ela picou o menino todo.
– Isso agora é moda em São Paulo, a garotada atarefada da classe alta inventou esse novo desporto. Sexo com mendigas... Vai entender.

O casal comendo peixe assado. Gewürztraminer, tudo na mais divina paz. Exceto, talvez, por uma pequena falta que crescia. Ah, sim, o menino... Mobiliado o apartamento, Nandinho parou de ligar, não mandava notícias.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Ele, Ela, e o Prestadio

Ele, Onofre. Ela, Ciça. Como se chama o que vem depois das bodas de ouro? Melífluos um com o outro até o fim. Que exemplo! Não tiveram filhos, estão a sós, coquinhos brancos de mãos dadas nesse mundaréu de lobos. Ele, noventa e poucos. Ela, oitenta e muitos. Todos os dias um balé, sincronia no despertar dos dois. O rádio dispara a tocar música de antigamente e cada um se torce numa direção. Tateiam seus criados mudos e, recolhidos os sorrisos submersos, concentram-se num oferecer mútuo de algo mais que bafo matutino: um bom dia de olho, um quero morrer primeiro.

Depois de alguns toques, o porteiro atende. A velhinha encarecida: “Seu Emídio? É o chuveiro de novo, seu Emídio. Choque? Não, não. Parou foi de funcionar de vez. Oi? Queimou a resistência?”

Onofre lê jornal, escova a botina, dama na praça. Faz queixa à esposa. Na feira, Ciça e a sacola, passinho de quelônio. O almoço vem vindo e cadê o de comer? O tempo. Eita lebre que não dorme nunca... Faz queixa ao bom Deus. Ele, gota. Ela, artrose.

“Seu Emídio? A pia, seu Emídio. Como? Ah... Cifão, é?”

O calendário se afinando, uma distraída e pum! Passou-se o ano. E outro. Quem é que não tem medo? Tudo igual, igual, igual. Ele, boina. Ela, xale. Daí que veio uma noite... Pode? Vou contar. Na sala, um sofá encardido. Por cima, enamorados em hiato de quase uma década. Números diminutos, botões amontoados. Estes aparatos! Nem a vista, nem a tremedeira colaboraram: o controle remoto entendeu um endereço estranho. “Onofre! O que é isso, Onofre? Eles estão... Gente! Olha o tamanho do... Ele vai... Jesus, Maria, José!” Imaginem só. Enrubescida, leva a mão à boca. Ele, saliente. Ela, um pouco mais.

“Será que o senhor poderia dar um pulinho aqui? Foi, soltou outra vez. Agradecida, seu Emídio.”

E foi assim, quase dois meses de um vivaz descomedimento. Onofre com dor no peito. São gases. Também pudera. É gemada, amendoim, marapuana... Até trago de catuaba tomou. Na farmácia: “Tem do azul?” E dona Ciça, que inventou de ir à praia todo dia de sábado! Com a amiga mais nova do bingo, gabou-se: “Menina do céu... Lá em casa tem fogo, viu?” E o velho, numa sexta-feira dessas, ficou duro e não amoleceu mais. Que transtorno. Mudou-se Onofre para uma gaveta lá no São João Baptista. Ele, poeira. Ela, saudade.

Dizem sobre estes casais matusalênicos que, quando um sobe, o outro não se demora a partir. Triste, triste. Comida perdendo, a cama grande que só. E o que fazer com as roupas? Uma vez, reparou nas pantufas do finado, lado a lado como sempre ficavam. Ô, dó. E a coceirinha? Essa não cessava. “Mas será o Benedito! Logo agora que meu velho se foi...” E o canal, qual que era mesmo o canal?

“Seu Emídio? Desculpe o horário... Pois é, um servicinho rápido. Chegando aqui eu lhe explico. Tem graxa aí, seu Emídio? Não, não. Emperrou nada, tá funcionando que é uma beleza. Ai, seu Emídio, o senhor é um Santo!”

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Sobeixos, sobejos, etc.

Os buracos são ermos, mas nem tanto. Lá vai Venâncio, degrau por degrau, jubiloso por sentir o odor de urina dormida eriçar seus pêlos da nuca. Venâncio gosta. Segundo ele, os habitantes desta cidade vil podem ser classificados em dois grandes grupos: os que, ao cruzar as sombras dos corredores, apertam o passo, e os que vão mais devagar, delongam-se em apreciação. Ama tudo que é lúbrico, este rapaz.

É preciso reinventar os nomes, pensa. Estes subterrâneos são chances, possibilidades. Paredes pichadas, bueiros, um tanto de lixo e algumas ratazanas: constelação para se montar uma incubadeira de afetos. Lá vai Venâncio, no estômago um auspício. “Encontrem-me, quero ser tomado!” Isto não é lá uma passagem, é algo que fica, que dura. Em cada toca imunda há um pedaço que lhe pertence. Vedes aquela camisinha usada atirada ao chão? Ele fez ela, ela faz ele.

Os vultos se esbarram à noite. Pode ser bom, pode ser ruim, pode nem ser. Depende do esbarro. Venâncio e a violência. Limite, fronteira, teste... Cada qual com a tortura que lhe convém. Está acontecendo agora mesmo. Nem uma palavra sequer: esbarro, entende? É um medo, um tesão, gozo xeque. Encostado na parede, sendo penetrado e pensando na mamãezinha – pode acreditar, não é culpa nem tara. É vingança.

Tinha sete anos e não entendia muito bem. O vizinho era de confiança, tomava conta do garoto. “Olha aqui, Venâncio, vou te ensinar um jogo...” A mãe ia trabalhar de manicure. Lar doce lar: ser cuidado, ver desenho, tomar refresco, e vez ou outra ter o rabo comido. Doze anos e entendia mais ou menos. Vieram crises, ataques. “Tomou o remédio, Venâncio? Abaixa a cueca. Isso, vira, vira...” , De quando em quando dormia naquele quarto. Era hospital? Dezessete e... Entender o quê? Já viram a libido amadurar num lodaçal? É isso e pronto. Lá vai Venâncio: desvantagem é a condição do seu pau duro.

Fecha o cinto, suspira e segue. Na parede, um cartaz: “Cursos Técnicos.” Outro mais à frente diz: “Fique sabendo, hiv/aids.” E outro: “Jogam-se búzios, põem-se cartas.” Anúncios, prenúncios, anúncios de prenúncios. Diriam estar fora dos eixos a vida desse rapaz. Mas é irônico. Por cima desta pista, segue pro trabalho todo santo dia. Por baixo – em dias nem tão santos –, segue para o perigo do qual é refém. Lá vai Venâncio, sob ou sobre. Vivendo, morrendo e entoando: à merda, civilização.