sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O Detritívoro

Não se tratava de um trabalho desgastante por natureza, mas Frederico, minucioso como nem sei, acabava por sentir o peso do labor em suas costas. Pouco se importava. Em clara oposição aos seus contratantes, muito sabia ele a respeito das sutilezas, das mil técnicas envolvidas no processo. Não sendo dotados os leigos dos devidos critérios de apreciação, era na feição da própria “mercadoria” que esse rapaz buscava o reconhecimento pelo serviço bem feito. Sim, mercadoria entre aspas, vá lá.

Sonhava em conhecer atrizes, o menino Quico. Ou mesmo em ser uma estrela dos bastidores da moda... Acontece que a vida real é uma pedrada no supercílio. De qualquer maneira, Frederico seguia feliz. Bastava um pincel e algumas cores para o tal milagre... Que sensibilidade! Sua crescente auto-estima transformou aquilo que era um garoto franzino, enleado, em um profissional que sabia se impor – ainda que nem sempre de maneira muito profissional. Passou a trabalhar em uma empresa de grande renome na praça, tornou-se um galanteador. Quando faziam troça de sua opção sexual, Frederico respondia classudo, sempre com um sorriso no canto da boca: “Sou onívoro, bem.”

***

– Como vocês podem perceber, há uma aura de quietude, vejam – o agente passando as costas da mão no rosto do finado.
– Sim, a mais pura serenidade. Aliás, eu arriscaria dizer que, pelo semblante, foi uma passagem amena – a secretária olhando para os presentes, caçando de alguma forma a aprovação de seu comentário.
– Câncer. Ele sentiu muita dor – a viúva assuando no lenço negro.
– É, mamãe, mas ele está com uma cara ótima...
– Verdade – o agente um pouco aliviado –, essa é a marca de Quico. A felicidade do falecido: trata-se da assinatura desse grande artista, não é à toa o nome de nossa empresa.
– Quero congratular esse homem pessoalmente, faço questão – ponderou a viúva rica, agora com as lágrimas secas e os soluços em digestão.

Os cinco que ali estavam seguiram para a sala de maquiagem – fazia também parte do grupo um guri que, com seu pirulito espiral multicolor, parecia não entender ou não ligar para a funebridade da situação. “Ué, trancada?” Após uma segunda investida, Marlene, a secretária, acabou por tropeçar sala adentro com porta e tudo. Num movimento rápido, porém não menos desastrado, tentou disfarçar o indisfarçável. Seu corpo bloqueava a entrada a todo e qualquer custo. A intermitência de sua voz confirmava a modalidade cretina de sua intervenção:

– Este é um... Um procedimento raro... Última tecnologia... Importada, nova, única... No que diz respeito ao... É... Ai, meu bom Deus...

Tarde. A cena não fora das mais amenas. Nem o guri se manteve alheio: o pirulito caiu no chão, partiu-se em pedaços. A visão de um cadáver nu se faz compreensível, obviamente, tendo em vista os procedimentos de qualquer funerária. Mas o que dizer de um anatomista em igual condição? Isto é, igual se desconsiderarmos o fato do rigor manifestado em uma dada região de Frederico não ser exatamente do tipo mortis... Que coisa.

***

Na delegacia, o propietário da “Final Feliz” balburdiava seus últimos sermões ao agora ex-empregado:

– Já fiz o que podia por você, Frederico. Imagina se isso sai nos jornais... Seria o fim! Eu te adiantava salário, assinava sua carteira, tudo bonitinho... E você me apronta uma dessas!
– Eu não fiz por mal... Ossos do ofício, sabe?
– Como é, rapaz?!
– Ora, seu Agenor, não se faça de desentendido. E os sorrisos? Da onde o senhor acha que vinham os sorrisos?

4 comentários:

  1. das mortes necessárias... no Choke (do Palahniuk) o Fred, no caso a persona central, ganha a vida em razão da compaixão dos outros. assim, depois de engasgar-se com um grande pedaço de carne, em vários restaurantes da cidade. até que alguém enfim tenha compaixão... it's a long way. talvez seja preciso morrer diante do público-ovo, talvez. tragic.

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  3. UHAuahauha
    Amei!
    Lindo!
    Lindo!

    sua obra prima!

    Sabe, uma vez tentei entar nesse bussiness.
    Perguntaram-me se tinha experiências com mortos.

    Disse-lhes que matei dois dos meus ex's.

    Não entenderam a brincadeira.
    ...
    Não fui contratada.

    (ps: veridiquérrimo)

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  4. Puta que Pariu!
    Não sabia que escrevia assim tão bem!
    Adorei! Muito mesmo...
    Parabéns

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