sexta-feira, 16 de julho de 2010

Carrão

Made en Trequadra 2

Dos velocípedes, o melhor. No estilo fórmula um: aerofólio, vários adesivos da Marlboro, perfeito para cavalos de pau sobre o assoalho encerado do bloco. Sim, primo egoísta é como câncer: toda família tem um caso. Por que tinha de ser logo ele o dono do “carrão”? Foda. “Não te empresto, vem pegar”, e, em plena fuga, o zura me atropela um pombo. O pobre animal enroscado no eixo, se esvaindo em penas e grunhidos inidentificáveis. Tocar no pássaro? Nunca! Rodar o pedal só piorou. Consternado, Gagau em berros: “Chama o Tiago!” E nosso primo mais velho, a par da situação, me desce as escadas empunhando um taco de bete: “Cadê? Vamos acabar logo com isso...”

Não me foi permitido assistir à eutanásia. Tiagão alegou ter enterrado a carcaça do bicho no areal da dezesseis – um desses imensos quadrados sem parquinho, sem trave de futebol ou rede de vôlei, sem significado algum. Dia vai, dia vem, e, numa dessas ocasiões insólitas que só a infância guarda, me deparo com o tal pombo nos arredores de sua cova. A ave ali: fantasmagoria a zanzar pelo super-cinzeiro-de-shopping. Sinal da cruz e pernas pra quem te quero. Duas ou três semanas de pesadelo e foi-se. Passou.

Meu primo mais novo, o mesmo do “carrão”, tinha um hamster. Pé de Pano era o nome. Daí o acidente: esmaguei o coitado com uma nave, um cacete espacial de Playmobil. O medo das consequências me levou de encontro a várias medidas insensatas, sendo uma delas a de enterrar o roedor ao lado do pombo. Aquela areia era estranha, vai que o diabo do rato também voltava... Não voltou. Castigo? Já que o homicídio não havia sido classificado como doloso, achei que iria escapar, mas peguei sete dias. Muito provavelmente devido à via de reparação que escolhi, insensível segundo o julgar de alguns: “Eu compro outro com a minha mesada, prometo.” Ora, o hamster, pelo menos para mim, deveria ser tratado como um animal de valor afetivo menor. Alguém aí já viu hamster em clínica veterinária? Não! É assim: rato a gente deixa morrer e pronto. Até comemora, dependendo do rato...

Anos depois, grandes revelações: meu primo mais velho confessou que havia jogado os restos mortais do pombo na lixeira do prédio, e que o rito ornitofúnebre não passara de um inverossímil adorno de caso. Hoje em dia, quando vislumbro aqueles ermos de areia, várias coisas me vêm à cabeça. Penso que os pombos são todos muito parecidos. E que os pássaros, por motivos óbvios, me fazem lembrar mais do Stephen King do que do Hitchcock. Penso também em cavar um buraco, em encontrar ali a ossada do rato, ou pelo menos um resquício de outrora, uma alegriazinha qualquer que seja.

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