sexta-feira, 5 de março de 2010

Cães e Canções

Acerca do Ermo (Preâmbulo)

Era passando por Dourados, no rumo de Ponta Porã. O acesso ficava à direita, logo após o primeiro posto. A estrada de terra seguia paralela por algum tempo à BR-463, quebrava sítio adentro, e tornava a desembocar na pista outra vez. Não podia soltar o pé, o chão era feito costela de cabrita magra. Tomavam aquela vereda os que queriam aliviar a vida de tanta bronquice. A mais sublime das espeluncas, acreditem, ficava plantada em um dado ponto desse descaminho de poeira e pedra. Lá, sob os lampiões envoltos em celofane vermelho e ao som vagabundo de uma mesa de dois canais, se apresentava ninguém menos que a diva guarani. Centro-oeste: oceano decrépito de plantações de soja e cabarés de quinta. Nessa região, daqui para mil anos, nada de novo há de surgir. Muito menos algo que se compare em beleza ao velho número de Rodolfo no “Estrela Dalva”.

Caminhoneiros, índios, frentistas, sacoleiros, trabalhadores sem terra, ciganos, boiadeiros, capatazes, alcoólatras, pequenos comerciantes, jogadores... Gente de bem e toda sorte de moribundos. Um puteiro, correto? Inácia, a dona do buraco, sabia o quão imune às duplas sertanejas são os homens verdadeiramente duros. Não dá para chorar as mazelas da vida fazendo sempre uso daqueles que glorificam a cornice, dos que seguem fingindo que o cu do Brasil se parece com o Texas. Por esse motivo, gozava de muitas regalias a musa café. Possuía um quarto próprio, era poupada dos gritos da proxeneta, escolhia os clientes. Kerexu Munõz, “La Reina del Pedro Juan Caballero”, ou, pelas bandas de cá, apenas Rodolfo. O ás do Dalva lotava a casa com sua voz ambígua de dor e consolo, umedecia hordas de pupilas xucras.


O Primeiro Homem

Aquele não era exatamente um espelho redondo com luzes na moldura. Sendo assim, o conjunto aspirante a penteadeira ostentava um glamour de tipo muito próprio. Plumas, brincos, anéis, inúmeros colares – uma conta para cada vez que teve vontade de morrer. No canto, um recorte desbotado com a foto de Ney Matogrosso. Nem sombra de cigarrilhas importadas no cinzeiro, apenas os restos de Calvert manchados de batom. Rodolfo estava prestes a entrar no palco, fazia seus últimos retoques. Quem se pinta para ganhar a vida sabe o tanto de digressão que cabe em cada etapa do processo. Infrutíferos são os dizeres que ousam se aproximar do mistério da maquiagem... Ela sentiu o vulto com a nuca:

– Ai, que susto! Seu demônio, coisa ruim... Quer me matar do coração?
– Rata velha! É tu que mata os outros – o homem com as mãos nos bolsos, sorrisinho de patife miserável.
– Vai entrando assim no meu camarim, sem bater nem nada... É doido, é?
– Camarim? Achei que aqui era o seu quarto.
– Essa parte do meu quarto é o meu camarim. Cretino.

O homem bulindo nos bibelôs. Uma inquietude enxerida enfeitada por gestos secos e rudes se fazia mais do que presente, não o deixava parar por nada.

– Me diz uma coisa... Rodolfo? Que estória é essa agora? Isso não é nome artístico...
– O nome sou eu que escolho. Eu sou a estrela dessa merda – o trago foi raivoso, veio com um pouco de filtro e provocou careta.
– Devia então era se chamar Dalva! Rodolfo não dá, é feio. Tem que arrumar um nome que case bem com você... Aliás, Kerexu, você não é toda índia, é?
– Não. Aqui corre sangue europeu, ó. Meu avô era um negociante rico, fazia parte nobreza.
– Nobre? No máximo um corsário fingido de espanhol, devasso mouro que entrou no mato e catou a sua avó no nó.
– Que seja. Cadê? Você trouxe?
– Essa raspa de parede ainda vai te custar caro...
– Anda, passa pra cá que já chegou minha hora.

Rodolfo dosou com a unha o salpico de nariz. Apressada, rolou escada abaixo e foi correndo encantar serpentes.


O Segundo Homem

– Alou? Com licença... Pode entrar? – o homem tímido segurava sem jeito o boné da Ivomec.
– Pode, meu bem. Sem acanhamento. Sente aqui do meu lado e me ajude com essas fivelas.

Os interessados passavam pela avaliação minuciosa de Inácia. A grande maioria era encaminhada às outras meninas da casa, apenas uns poucos obtinham permissão para subir e conversar com Rodolfo. Naquela ocasião, o homem mal entrara no quarto e já havia obtido a aprovação imediata da musa. Mesmo o piso do aposento não estando dos mais limpos, o homem se preocupou com o barro de suas botas. Aprovadíssimo. Por vezes Rodolfo inspirava cuidado nas pessoas. E esse era um critério decisivo.

Rodolfo não tinha seios. Apesar de seu corpo ser longilíneo e suave, ficavam evidentes alguns traços masculinos. O homem se espantou ao despir Kerexu: o sexo era exatamente como o das outras mulheres. Assim como as melhores transas, aquele corpo permaneceu para sempre enigmático.

– Você acha ruim se eu ficar mais um pouco?
– Olha o potrinho carente... Você gosta de coceira nas costas?
– Gosto.


O Último Homem

Ela ouviu o barulho, achou normal. Alguns marmanjos gostam de cair uns sobre os outros, se arranham em infindáveis medições de pau. O que chamou sua atenção foi a mudança repentina, um tipo qualquer de silêncio póstumo. Os toques à porta soaram sarcásticos, a madeira transmitia a intenção perversa. Foi o tempo de Rodolfo alcançar a arma na cômoda.

– Solta esse brinquedo – o homem com sangue na roupa, sereno até.

Veterana, a índia conhecia bem o resultado dos dados. Fazer o quê? Fugir? Dá um tempo. Onde é que se arruma força pra botar banca de esperta numa hora dessas? Rodolfo estava cansado. De ir e de ficar. Uma canseira absoluta, não tinha jeito. O show era só um galho que escapava à lama... Foda-se.

– Fez bem, índia. Olha só essa peça! Beretta prateada do cabo perolado: bem a cara de uma puta paraguaia. Calibre 635. Além de feia, costuma enguiçar – o homem expeliu um cuspo enquanto contemplava a arma –, não vale cinco mangos. Vou testar ela em você. Se falhar, te deixo seguir viagem.
– É um canil, não é?
– O quê?
– O mundo... O mundo é um canil.
– Não sei. Mas eu vou pensar nisso, índia. Vou pensar.


Acerca do Ermo (Posfácio/Epitáfio)

Do Dalva não sobrou muito. Uma ruína no pasto, pilha de restos outrora musicados. Alguém aí acredita na memória das coisas? Quem quiser pode ir lá estudar os ossos.

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